domingo, 10 de junho de 2012

Richard Dawkins sempre muito bom!

Por que quero que todas nossas crianças leiam a Bíblia do rei James

RICHARD DAWKINS
DO "GUARDIAN"

Por alguma razão, a Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência (Reino Unido) não foi abordada para pedir uma doação em apoio ao plano de Michael Gove de colocar uma Bíblia Rei James [a tradução autorizada da Bíblia feita sob o reinado de James 1º] em todas as escolas estaduais. Certamente teríamos considerado o pedido com seriedade, e, se os membros da fundação não tivessem concordado, eu teria contribuído pessoalmente de muito bom grado. Mas o que aconteceu é que isso ficou a cargo de "doadores milionários do Partido Conservador".

Fico um pouco chocado com o que fica implícito: quem nem todas as bibliotecas escolares já possuem um exemplar do livro. Será verdade? O que elas têm, então? "Harry Potter"? Vampiros? Ou será que preferem uma dessas traduções modernas em que "Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade" vira "Totalmente sem sentido, diz o Mestre. Tudo é sem sentido"? Isso é Eclesiastes 1:2, como você descobrirá na "Common English Bible". E seria difícil ser muito mais ordinário que isso, embora eu tenha que admitir que a tradução da God's Word é concorrência apertada, com "absolutamente sem sentido", e a "Good News Bible" seja outra rival forte como "inútil, inútil".

Eclesiastes, na tradução de 1611, é uma das glórias da literatura inglesa (já me disseram que é muito bom também no original hebraico). Toda a Bíblia do rei James é repleta de alusões literárias, quase tantas quanto Shakespeare (para citar a autoridade distinta que é "Anon" [anônimo], o problema de "Hamlet" é que é tão cheio de clichês).

Em "Deus, Um Delírio", tenho uma seção intitulada "A educação religiosa como parte da cultura literária", em que faço uma lista de 129 frases bíblicas que qualquer anglófono culto reconhecerá de imediato e talvez empregue sem ter consciência de sua origem: o sal da terra; se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas; lavo minhas mãos; lobo em pele de cordeiro; como uma imagem imperfeita, num espelho embaçado; esconder uma lâmpada sob um cesto; não há paz para os ímpios; como caíram os poderosos.

Um anglófono nativo que nunca ouviu uma palavra da Bíblia do rei James beira a barbárie. Na semana após o censo de 2011, minha Fundação Reino Unido encomendou da Ipsos Mori uma pesquisa junto às pessoas que tinham assinalado serem cristãs. Entre outras coisas, pedimos a elas que identificassem o primeiro livro do Novo Testamento, sendo as opções Mateus, Gênesis, Atos dos Apóstolos, Salmos, "não sei" e "prefiro não dizer". Apenas 35% escolheram "Mateus", enquanto 39% selecionaram "não sei" (e 1%, por razões desconhecidas, optaram por "prefiro não dizer").

Esses números, repetindo, não se aplicam à população britânica como um todo, mas apenas aos britânicos que se identificaram como cristãos no censo.

Também a história europeia é incompreensível sem algum conhecimento das facções da cristandade que se enfrentaram em guerras e do livro em torno de cujas sutilezas de interpretação elas se mostraram tão dispostas a massacrar e torturar umas às outras. A hóstia da eucaristia apenas simboliza o corpo de Jesus ou ela se torna seu corpo, em "substância" verdadeira, mesmo que não em DNA "acidental"? Guerras prolongadas foram travadas em torno de como devemos interpretar as palavras supostamente proferidas na Última Ceia.

Três bispos foram queimados vivos diante da janela do meu quarto na faculdade onde estudei em Oxford, por terem dado a resposta não aprovada. Cismas seculares foram baseados em nada mais sério que a questão de se Jesus é ao mesmo tempo Deus e seu filho ou apenas seu filho (muito importante). Guerras ainda mais sangrentas foram travadas contra uma religião rival que o vê não como filho de Deus, mas o reverencia como profeta, apenas.

Tenho um motivo oculto para querer contribuir para o plano de Gove. Pessoas que não conhecem bem a Bíblia foram induzidas a pensar que o livro é um bom guia de moralidade. Essa visão equivocada pode ter motivado os "doadores milionários do Partido Conservador". Já ouvi até mesmo a opinião cinicamente misantrópica de que, sem a Bíblia como norte moral, as pessoas não teriam impedimentos a cometer assassinatos, roubos e agressões. A maneira mais segura de livrar-se dessa falsidade perniciosa é ler a própria Bíblia.

Você advoga os Dez Mandamentos como guia à vida correta? Só posso presumir que você não os conheça. Os dois primeiros --"não terás outros deuses diante de mim" e "não farás para ti imagem esculpida"-- vêm de um tempo em que os judeus ainda acreditavam na existência de muitos deuses, mas tinham jurado fidelidade a apenas um deles, seu deus tribal "zeloso".

"Guarda o dia do sábado, para o santificar": este mandamento é visto como sendo tão importante (como nossas crianças aprenderão quando forem à biblioteca escolar para ler a cópia da Bíblia presenteada por Gove) que um homem flagrado recolhendo lenha no sábado foi sumariamente apedrejado até a morte pela comunidade inteira, atendendo às ordens diretas de Deus.

"Honra a teu pai e tua mãe." Ótimo. Mas honra a teus filhos? Não se Deus, como fez com Abraão para testar a lealdade dele, mandar você matar seu filho amado, fazendo dele uma oferenda queimada. A lição é clara: em última análise, a obediência a Deus tem precedência sobre a decência humana, isso para nem sequer falar da obediência ao mandamento seguinte, "não matarás". Este é o único dos mandamentos que muitos devotos conhecem de fato. Seu caráter óbvio foi ironizado com muita propriedade por Christopher Hitchens, mas minha imaginação ouve a resposta dada pelos israelitas a Moisés na voz de Basil Fawlty:

"Ah, entendi. Não MATARÁS. Sou tão tonto! Sabe o que é, antes de você descer da montanha com as tábuas de pedra, a gente achava que matar não era problema algum. Mas, agora que já vimos isso escrito numa TÁBUA DE PEDRA --bem, isso faz toda a diferença. Não matarás! Quem diria? Eu sou uma besta mesmo."

De qualquer maneira, o mandamento queria dizer apenas "não matarás membros de tua própria tribo". Matar cananeus, midianitas, jebuseus, heveus etc., especialmente se eles tivessem o azar de viver na "Lebensraum" Prometida, não era problema algum --na verdade, é fortemente encorajado em todo o Pentateuco. Matar todos os homens e os meninos, além da maioria das mulheres. "Mas todas as meninas, que não conheceram homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós" (Números 31:18). São lições morais tão ótimas --todas as crianças deveriam ser expostas a elas.

Teólogos ditos "sofisticados" (o que existe de sofisticado na "teologia"?) hoje tratam esses horrores como parábolas ou mitos; ainda bem. Mas muitos protestantes fundamentalistas ainda os interpretam literalmente e afirmam positivamente que, se Deus lhes mandasse matar seus próprios filhos, eles obedeceriam. É difícil acreditar em algo assim, mas isso é documentado plenamente em um filme brilhante, "In God We Trust?", de Scott Burdick.

Outros teólogos aceitarão que o Velho Testamento é bastante medonho, mas apontarão com orgulho, além de acenos de aprovação de todos os lados, para o Novo Testamento como um guia de moralidade realmente justo. É mesmo?

O dogma central do Novo Testamento é que Jesus morreu como bode expiatório do pecado de Adão e dos pecados que todos nós, gerações então ainda não nascidas, pudéssemos contemplar cometer no futuro. O pecado de Adão talvez seja mitigado por uma circunstância atenuante: ele não existiu.

De qualquer maneira, seu pecado limitou-se a roubar uma fruta, ou, dependendo da teologia de cada um, buscar o conhecimento --algo que um ministro da Educação com certeza deveria enxergar como uma virtude. Mas a mensagem inconfundível fica clara: todos nós "nascemos no pecado", mesmo que não acreditemos literalmente, como Santo Agostinho, que o pecado de Adão foi transmitido a nós através do sêmen.

E Deus, o criador todo-poderoso, capaz de mover montanhas e de criar um universo com todas as leis da física, não pôde encontrar uma maneira melhor de livrar-nos do peso do pecado do que através de um sacrifício de sangue?

Nas palavras de São Paulo, o inventor do cristianismo (ou nas palavras de quem quer que tenha sido o autor de fato da Epístola aos Hebreus), "sem derramamento de sangue não há remissão".

E o bode expiatório não poderia ser alguém qualquer. O pecado era tão grande que apenas seu filho (ou o próprio Deus, dependendo da teologia trinitária de cada um) seria o bastante. Foi necessário que Deus "descesse à Terra" pessoalmente e se fizesse torturar e executar, depois de ter sido "traído" (embora nunca seja explicado por que foi uma traição, já que se fazer executar foi a finalidade principal da visita, nem tampouco seja explicada a vendeta milenar contra os judeus por serem "matadores de Cristo").

Seja o que for que a Bíblia possa ser --e ela realmente é uma grande obra de literatura--, não é um livro moral, e as crianças precisam aprender esse fato importante porque muito frequentemente lhes é dito o contrário. Os exemplos que citei são a ponta de um iceberg muito grande e desagradável. Uma boa maneira de descobrir o que está em um livro é ler o livro; por isso eu recomendo que se leia a Bíblia. Mas será que alguém, mesmo Gove, pensa seriamente que as pessoas vão fazer isso?

Tradução de CLARA ALLAIN.

Publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo em 1 de junho de 2012.

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