RICHARD DAWKINS
DO "GUARDIAN"
Por alguma razão, a Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência
(Reino Unido) não foi abordada para pedir uma doação em apoio ao plano de
Michael Gove de colocar uma Bíblia Rei James [a tradução autorizada da Bíblia
feita sob o reinado de James 1º] em todas as escolas estaduais. Certamente
teríamos considerado o pedido com seriedade, e, se os membros da fundação não
tivessem concordado, eu teria contribuído pessoalmente de muito bom grado. Mas
o que aconteceu é que isso ficou a cargo de "doadores milionários do
Partido Conservador".
Fico um pouco chocado com o que fica implícito: quem nem todas as
bibliotecas escolares já possuem um exemplar do livro. Será verdade? O que elas
têm, então? "Harry Potter"? Vampiros? Ou será que preferem uma dessas
traduções modernas em que "Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de
vaidades! Tudo é vaidade" vira "Totalmente sem sentido, diz o Mestre.
Tudo é sem sentido"? Isso é Eclesiastes 1:2, como você descobrirá na
"Common English Bible". E seria difícil ser muito mais ordinário que
isso, embora eu tenha que admitir que a tradução da God's Word é concorrência
apertada, com "absolutamente sem sentido", e a "Good News Bible"
seja outra rival forte como "inútil, inútil".
Eclesiastes, na tradução de 1611, é uma das glórias da literatura
inglesa (já me disseram que é muito bom também no original hebraico). Toda a
Bíblia do rei James é repleta de alusões literárias, quase tantas quanto
Shakespeare (para citar a autoridade distinta que é "Anon" [anônimo],
o problema de "Hamlet" é que é tão cheio de clichês).
Em "Deus, Um Delírio",
tenho uma seção intitulada "A educação religiosa como parte da cultura
literária", em que faço uma lista de 129 frases bíblicas que qualquer
anglófono culto reconhecerá de imediato e talvez empregue sem ter consciência
de sua origem: o sal da terra; se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai
com ele duas; lavo minhas mãos; lobo em pele de cordeiro; como uma imagem
imperfeita, num espelho embaçado; esconder uma lâmpada sob um cesto; não há paz
para os ímpios; como caíram os poderosos.
Um anglófono nativo que nunca ouviu uma palavra da Bíblia do rei James
beira a barbárie. Na semana após o censo de 2011, minha Fundação Reino Unido
encomendou da Ipsos Mori uma pesquisa junto às pessoas que tinham assinalado
serem cristãs. Entre outras coisas, pedimos a elas que identificassem o
primeiro livro do Novo Testamento, sendo as opções Mateus, Gênesis, Atos dos
Apóstolos, Salmos, "não sei" e "prefiro não dizer". Apenas
35% escolheram "Mateus", enquanto 39% selecionaram "não sei"
(e 1%, por razões desconhecidas, optaram por "prefiro não dizer").
Esses números, repetindo, não se aplicam à população britânica como um
todo, mas apenas aos britânicos que se identificaram como cristãos no censo.
Também a história europeia é incompreensível sem algum conhecimento das
facções da cristandade que se enfrentaram em guerras e do livro em torno de
cujas sutilezas de interpretação elas se mostraram tão dispostas a massacrar e
torturar umas às outras. A hóstia da eucaristia apenas simboliza o corpo de
Jesus ou ela se torna seu corpo, em "substância" verdadeira, mesmo
que não em DNA "acidental"? Guerras prolongadas foram travadas em
torno de como devemos interpretar as palavras supostamente proferidas na Última
Ceia.
Três bispos foram queimados vivos diante da janela do meu quarto na
faculdade onde estudei em Oxford, por terem dado a resposta não aprovada.
Cismas seculares foram baseados em nada mais sério que a questão de se Jesus é
ao mesmo tempo Deus e seu filho ou apenas seu filho (muito importante). Guerras
ainda mais sangrentas foram travadas contra uma religião rival que o vê não
como filho de Deus, mas o reverencia como profeta, apenas.
Tenho um motivo oculto para querer contribuir para o plano de Gove.
Pessoas que não conhecem bem a Bíblia foram induzidas a pensar que o livro é um
bom guia de moralidade. Essa visão equivocada pode ter motivado os
"doadores milionários do Partido Conservador". Já ouvi até mesmo a
opinião cinicamente misantrópica de que, sem a Bíblia como norte moral, as
pessoas não teriam impedimentos a cometer assassinatos, roubos e agressões. A
maneira mais segura de livrar-se dessa falsidade perniciosa é ler a própria
Bíblia.
Você advoga os Dez Mandamentos como guia à vida correta? Só posso
presumir que você não os conheça. Os dois primeiros --"não terás outros
deuses diante de mim" e "não farás para ti imagem esculpida"--
vêm de um tempo em que os judeus ainda acreditavam na existência de muitos
deuses, mas tinham jurado fidelidade a apenas um deles, seu deus tribal
"zeloso".
"Guarda o dia do sábado, para o santificar": este mandamento é
visto como sendo tão importante (como nossas crianças aprenderão quando forem à
biblioteca escolar para ler a cópia da Bíblia presenteada por Gove) que um
homem flagrado recolhendo lenha no sábado foi sumariamente apedrejado até a
morte pela comunidade inteira, atendendo às ordens diretas de Deus.
"Honra a teu pai e tua mãe." Ótimo. Mas honra a teus filhos?
Não se Deus, como fez com Abraão para testar a lealdade dele, mandar você matar
seu filho amado, fazendo dele uma oferenda queimada. A lição é clara: em última
análise, a obediência a Deus tem precedência sobre a decência humana, isso para
nem sequer falar da obediência ao mandamento seguinte, "não matarás".
Este é o único dos mandamentos que muitos devotos conhecem de fato. Seu caráter
óbvio foi ironizado com muita propriedade por Christopher Hitchens, mas minha
imaginação ouve a resposta dada pelos israelitas a Moisés na voz de Basil
Fawlty:
"Ah, entendi. Não MATARÁS. Sou tão tonto! Sabe o que é, antes de
você descer da montanha com as tábuas de pedra, a gente achava que matar não
era problema algum. Mas, agora que já vimos isso escrito numa TÁBUA DE PEDRA
--bem, isso faz toda a diferença. Não matarás! Quem diria? Eu sou uma besta
mesmo."
De qualquer maneira, o mandamento queria dizer apenas "não matarás
membros de tua própria tribo". Matar cananeus, midianitas, jebuseus,
heveus etc., especialmente se eles tivessem o azar de viver na
"Lebensraum" Prometida, não era problema algum --na verdade, é
fortemente encorajado em todo o Pentateuco. Matar todos os homens e os meninos,
além da maioria das mulheres. "Mas todas as meninas, que não conheceram
homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós" (Números 31:18). São
lições morais tão ótimas --todas as crianças deveriam ser expostas a elas.
Teólogos ditos "sofisticados" (o que existe de sofisticado na
"teologia"?) hoje tratam esses horrores como parábolas ou mitos;
ainda bem. Mas muitos protestantes fundamentalistas ainda os interpretam
literalmente e afirmam positivamente que, se Deus lhes mandasse matar seus
próprios filhos, eles obedeceriam. É difícil acreditar em algo assim, mas isso
é documentado plenamente em um filme brilhante, "In God We Trust?",
de Scott Burdick.
Outros teólogos aceitarão que o Velho Testamento é bastante medonho, mas
apontarão com orgulho, além de acenos de aprovação de todos os lados, para o
Novo Testamento como um guia de moralidade realmente justo. É mesmo?
O dogma central do Novo Testamento é que Jesus morreu como bode
expiatório do pecado de Adão e dos pecados que todos nós, gerações então ainda
não nascidas, pudéssemos contemplar cometer no futuro. O pecado de Adão talvez
seja mitigado por uma circunstância atenuante: ele não existiu.
De qualquer maneira, seu pecado limitou-se a roubar uma fruta, ou,
dependendo da teologia de cada um, buscar o conhecimento --algo que um ministro
da Educação com certeza deveria enxergar como uma virtude. Mas a mensagem
inconfundível fica clara: todos nós "nascemos no pecado", mesmo que
não acreditemos literalmente, como Santo Agostinho, que o pecado de Adão foi
transmitido a nós através do sêmen.
E Deus, o criador todo-poderoso, capaz de mover montanhas e de criar um
universo com todas as leis da física, não pôde encontrar uma maneira melhor de
livrar-nos do peso do pecado do que através de um sacrifício de sangue?
Nas palavras de São Paulo, o inventor do cristianismo (ou nas palavras
de quem quer que tenha sido o autor de fato da Epístola aos Hebreus), "sem
derramamento de sangue não há remissão".
E o bode expiatório não poderia ser alguém qualquer. O pecado era tão
grande que apenas seu filho (ou o próprio Deus, dependendo da teologia
trinitária de cada um) seria o bastante. Foi necessário que Deus "descesse
à Terra" pessoalmente e se fizesse torturar e executar, depois de ter sido
"traído" (embora nunca seja explicado por que foi uma traição, já que
se fazer executar foi a finalidade principal da visita, nem tampouco seja
explicada a vendeta milenar contra os judeus por serem "matadores de
Cristo").
Seja o que for que a Bíblia possa ser --e ela realmente é uma grande
obra de literatura--, não é um livro moral, e as crianças precisam aprender
esse fato importante porque muito frequentemente lhes é dito o contrário. Os
exemplos que citei são a ponta de um iceberg muito grande e desagradável. Uma
boa maneira de descobrir o que está em um livro é ler o livro; por isso eu
recomendo que se leia a Bíblia. Mas será que alguém, mesmo Gove, pensa
seriamente que as pessoas vão fazer isso?
Tradução de CLARA ALLAIN.
Publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São
Paulo em 1 de junho de 2012.
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