terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Bento XVI, o Ocidente e o Conservadorismo

Este blog, apesar de ateu, publica dois artigos de extrema importância par o entendimento de uma renúncia que apesar de dizer respeito a uma religião afeta politicamente praticamente todos os países do mundo, infelizmente.
O primeiro artigo é do grande jornalista Mauro Santayana e o segundo de Saul Leblon em seu Blog das Frases no portal de esquerda Carta Maior e para ilustrar e não deixar que nossos leitores esqueçam, uma foto das práticas da denominada "santa inquisição", do qual o sr. Ratzinger foi um dos seus mentores na atualidade.


A igreja e a reinvenção do Ocidente

por Mauro Santayana no JB Online

Ao surpreender o mundo — menos alguns íntimos de sua fadiga — com a renúncia ao papado, Bento XVI revela a grande crise por que passa a Igreja Católica. Quando Gregório XII renunciou, em 1415, seu gesto unificou a instituição, então dividida sob três pontífices desde 1378. Ângelo Correr percebeu, com acuidade, que ele assim serviria melhor à sua própria posteridade ao servir à unidade da Igreja e abandonar o trono papal.

Ele não era O Papa, mas a terceira parte de um poder que, dividido, enfraquecia-se cada vez mais diante do mundo e, o que é pior, diante da História. Os dois anos de vida que lhe sobraram — morreu em 1417 — lhe devem ter assegurado esse consolo. Ele tinha 90 anos ao renunciar — uma idade difícil de atingir naquela véspera do Renascimento — mas deu a seu gesto o claro caráter político, ao negociá-lo com o adversário mais forte e influir na escolha — unânime, do sucessor, Martinho V — da poderosa família Colonna. Não alegou cansaço mas, sim, responsabilidade política.


Mais longa do que o Grande Cisma dos séculos 14 e 15, que durou quase 40 anos, é a já duradoura crise do Ocidente, de que a Igreja foi fiadora e principal organização política, desde Constantino e Ambrósio. Depois da morte de ambos, a Igreja se proclamou herdeira do Império Romano, com base em um documento apócrifo, a Constitutum Constantini, segundo o qual Constantino legava ao papa Silvestre I — e, assim, à Igreja — todo o poder político e todos os bens do Império. O documento, forjado no século 8, foi desmascarado por Lourenço Valla, no século 15.

Um dos mais destacados latinistas e gramáticos da História, Valla provou que o latim usado para redigir o documento não existia no século 4. A inteligência lógica de Ambrósio arquitetou a construção política da Igreja, conduzida na sábia combinação entre a concentração da autoridade espiritual no Vaticano, exercida mediante os bispos, e a distribuição do poder temporal entre os reis e os senhores feudais, sem esquecer o domínio direto sobre os estados pontifícios, que garantiam a incolumidade dos papas.

Dessa forma foi possível, em esforço de séculos, domar a anarquia, conter e assimilar os bárbaros e dar estrutura política e social à Idade Média, com a consolidação da injustiça de sempre contra os pobres e os pensadores que os defendiam, quase sempre levados às inquisições e à fogueira, como ocorreu a Giordano Bruno, no auge do Renascimento, em 1600.

Ambrósio, nobre burocrata do Império, pagão até ser eleito bispo de Milão, não agiu como teólogo, que não era, mas, sim, como um dos mais hábeis estrategistas políticos da História. Coube-lhe salvar os pontos basilares da ideia do Ocidente.

A Igreja sempre fez alianças com o poder temporal, algumas piores do que as outras, a fim de evitar a prevalência do verdadeiro cristianismo sobre seus interesses políticos no mundo. É assim que o Vaticano de nossos dias — depois de tolerância criminosa com Hitler, sob Pio XII — mantém o acordo firmado entre Reagan e Wojtyla, há mais de trinta anos, com o objetivo, atingido, de destruir a União Soviética e combater o socialismo. É preciso lembrar que, para o êxito da conspiração, contribuíram o traidor Gorbatchev, hoje garoto propaganda dos artigos de luxo da Louis Vuitton, e as operações do Banco Ambrosiano (valha a coincidência), para financiar o Solidarinost, o sindicato de direita da Polônia, liderado por Lech Walesa.

Mesmo que não a desejasse, Ratzinger seria compelido à renúncia, pelos mais eminentes membros da Cúria Romana, que se preocupam com a sanidade mental do pontífice, cujo engajamento com os setores mais conservadores da Igreja tem comprometido o seu arbítrio. Acrescente-se o movimento, subterrâneo, mas vigoroso, da Igreja Latina — e mais perceptível no episcopado italiano — de encerrar o período de papas menos universais e empenhados em sua razão nacionalista, como o polonês e o alemão. Isso não significa que o clero italiano recupere a Santa Sé, mas anuncia uma campanha intensa durante o conclave em favor de um candidato com as chances de Ângelo Scola, atual arcebispo de Milão, e advogado de diálogo franco e aberto com o islã.


Em seu pronunciamento de renúncia, o papa associou seu gesto à crise do pensamento ocidental, no tempo de alucinantes mudanças: “... no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, quer do corpo quer do espírito; vigor este que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado”.

Como anotou Gregório de Tours, no enigmático século 6, o mundo de vez em quando envelhece, encasulado na dúvida, e reclama a metamorfose. A Igreja Cristã (não só a Católica) e o Ocidente, xifópagos há 16 séculos, necessitam reinventar-se. Talvez a astúcia hoje dependa de pensadores abertos, como o arcebispo de Milão, sucessor de Ambrósio no episcopado. Talvez seja o tempo de se convocar não um Concílio da Igreja Católica mas de organizar-se um Concílio Ecumênico Universal, para salvar a ideia de um Deus comum, reunindo todas as crenças em nome da vida e da paz entre os homens de boa vontade.

Bento XVI: crise e a exaustão conservadora

publicado no Blog das Frases por Saul Leblon

Dinheiro, poder e sabotagens. Corrupção, espionagem, escândalos sexuais.

A presença ostensiva desses ingredientes de filme B no noticiário do Vaticano ganhou notável regularidade nos últimos tempos.

A frequência e a intensidade anunciavam algo nem sempre inteligível ao mundo exterior: o acirramento da disputa sucessória de Bento XVI nos bastidores da Santa Sé.

Desta vez, mais que nunca, a fumaça que anunciará o 'habemus papam' refletirá o desfecho de uma fritura política de vida ou morte entre grupos radicais de direita na alta burocracia católica.

Mais que as razões de saúde, existiriam razões de Estado que teriam levado Bento XVI a anunciar a renúncia de seu papado, nesta 2ª feira.

A verdade é que a direita formada pelos grupos 'Opus Dei' (de forte presença em fileiras do tucanato paulista), 'Legionários' e 'Comunhão e Libertação' (este último ligado ao berlusconismo) já havia precipitado fim do seu papado nos bastidores do Vaticano.

Sua desistência oficializa a entrega de um comando de que já não dispunha.

Devorado pelos grupos que inicialmente tentou vocalizar e controlar, Bento XVI jogou a toalha.

O gesto evidencia a exaustão histórica de uma burocracia planetária, incapaz de escrutinar democraticamente suas divergências. E cada vez mais afunilada pela disputa de poder entre cepas direitistas, cuja real distinção resume-se ao calibre das armas disponíveis na guerra de posições.

Ironicamente, Ratzinger foi a expressão brilhante e implacável dessa engrenagem comprometida.

Quadro ecumênico da teologia, inicialmente um simpatizante das elaborações reformistas de pensadores como Hans Küng (leia seu perfil elaborado por José Luís Fiori), Joseph Ratzinger escolheu o corrimão da direita para galgar os degraus do poder interno no Vaticano.

Estabeleceu-se entre o intelectual promissor e a beligerância conservadora uma endogamia de propósito específico: exterminar as ideias marxistas dentro do catolicismo.

Em meados dos anos 70/80 ele consolidaria essa comunhão emprestando seu vigor intelectual para se transformar em uma espécie de Joseph McCarty da fé.

Foi assim que exerceu o comando da temível Congregação para a Doutrina da Fé.

À frente desse sucedâneo da Santa Inquisição, Ratzinger foi diretamente responsável pelo desmonte da Teologia da Libertação.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos intelectuais mais prestigiados desse grupo, dentro e fora da igreja, esteve entre as suas presas.

Advertido, punido e desautorizado, seus textos foram interditados e proscritos. Por ordem direta do futuro papa.

Antes de assumir o cargo supremo da hierarquia, Ratzinger 'entregou o serviço' cobrado pelo conservadorismo.

Tornou-se mais uma peça da alavanca movida por gigantescas massas de forças que decretariam a supremacia dos livres mercados nos anos 80; a derrota do Estado do Bem Estar Social; o fim do comunismo e a ascensão dos governos neoliberais em todo o planeta.

Não bastava conquistar Estados, capturar bancos centrais, agências reguladoras e mercados financeiros.

Era necessário colonizar corações e mentes para a nova era.

Sob a inspiração de Ratzinger, seu antecessor João Paulo II liquidou a rede de dioceses progressistas no Brasil, por exemplo.

As pastorais católicas de forte presença no movimento de massas foram emasculadas em sua agenda 'profana'. A capilaridade das comunidades eclesiais de base da igreja foi tangida de volta ao catecismo convencional.

Ratzinger recebeu o Anel do Pescador em 2005, no apogeu do ciclo histórico que ajudou a implantar.

Durou pouco.

Três anos depois, em setembro de 2008, o fastígio das finanças e do conservadorismo sofreria um abalo do qual não mais se recuperou.

Avulta desde então a imensa máquina de desumanidade que o Vaticano ajudou a lubrificar neste ciclo (como já havia feito em outros também).

Fome, exclusão social, desolação juvenil não são mais ecos de um mundo distante. Formam a realidade cotidiana no quintal do Vaticano, em uma Europa conflagrada e para a qual a Igreja Católica não tem nada a dizer.

Sua tentativa de dar uma dimensão terrena ao credo conservador perdeu aderência em todos os sentidos com o agigantamento de uma crise social esmagadora.

O intelectual da ortodoxia termina seu ciclo deixando como legado um catolicismo apequenado; um imenso poder autodestrutivo embutido no canibalismo das falanges adversárias dentro da direita católica. E uma legião de almas penadas a migrar de um catolicismo etéreo para outras profissões de fé não menos conservadoras, mas legitimadas em seu pragmatismo pela eutanásia da espiritualidade social irradiada do Vaticano.

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