Matérias publicadas no sítio Carta Maior no dia 21/9:
Diante da crise de mobilidade que afeta as cidades brasileiras e das celebrações do Dia Mundial Sem Carro, a Carta Maior preparou um especial sobre o tema. Nele, o leitor encontrará reportagens e artigos com um raio-x do trânsito e dos acidentes nas maiores cidades brasileiras e em algumas do exterior. O diagnóstico geral – a esta altura, bastante óbvio – é que a grande vilã é a cultura do automóvel que impera nas grandes cidades, particularmente nas brasileiras. E o remédio não poderia ser outro: políticas de valorização do transporte coletivo, dos pedestres e dos ciclistas.
São Paulo - Neste sábado (22) celebra-se mais um Dia Mundial Sem Carro. O evento acontece num contexto em que a crise da mobilidade urbana atinge níveis espantosos e em que a sociedade cada vez mais discute soluções para enfrentá-la. Em São Paulo, por exemplo, ocorre desde o dia 14 a Semana da Mobilidade, cuja programação incluiu, entre outras atividades, seminários, oficinas, intervenções e exibição de filmes. No sábado, será a vez da manifestação “A Cidade é Nossa: Passeata pelo Plano de Mobilidade Sustentável de São Paulo”. A concentração será às 15 horas no vão do Masp, na avenida Paulista.
Para tentar contribuir com o diagnóstico do problema e com a elaboração de propostas, a Carta Maior preparou este especial. Nele, o leitor encontrará reportagens e artigos com um raio-x do trânsito e dos acidentes nas maiores cidades brasileiras e em algumas do exterior. No Brasil, os textos tratam de oito municípios: Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e São Paulo. Lá fora, de quatro: Berlim, Buenos Aires, Londres e Paris.
O diagnóstico geral – a esta altura, bastante óbvio – é que a grande vilã da crise de mobilidade é a cultura do automóvel que impera nas grandes cidades, particularmente nas brasileiras. E o remédio não poderia ser outro: políticas de valorização do transporte coletivo, dos pedestres e dos ciclistas.
Pois a crise se intensifica a cada ano. No fim de julho, um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revelou que nas metrópoles brasileiras 17,5% das pessoas gastam mais de uma hora para chegar ao trabalho. Índice que aumenta quando se considera regiões de maior porte demográfico e econômico, como a Grande São Paulo (23,2%) e a Grande Rio de Janeiro (22%).
Segundo outro estudo, este da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o tempo médio gasto em deslocamentos urbanos cresceu 20% entre 2003 e 2010 no país. No mesmo período, enquanto o crescimento demográfico foi de 13%, o número de veículos em circulação aumentou 66%. “Existe uma política oculta de Estado de universalizar o uso e a propriedade do automóvel. Oculta porque não se ouve nenhum político defendendo que se dê prioridade ao automóvel”, diz, em entrevista à Carta Maior, Nazareno Stanislau Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). (Para ler a entrevista, clique aqui)
A desigualdade de tratamento dispensado pelo poder público aos transportes individual motorizado e coletivo é gritante. De acordo com o mesmo levantamento da CNI, o individual é 14 vezes mais caro para o Estado do que o coletivo – nessa estatística, estão incluídos os gastos com construção, operação e manutenção do sistema que viabiliza a circulação dos carros e os custos decorrentes da poluição e dos acidentes. Levando-se em conta a óbvia constatação sobre quais faixas de renda utilizam quais meios de transporte, é fácil concluir que a prioridade ao automóvel é uma opção de classe.
Em abril deste ano, entrou em vigor a Lei de Mobilidade Urbana, cujo elemento estrutural, segundo Affonso, é a prioridade ao pedestre, ao transporte público e aos ciclistas. Agora, resta saber se a nova legislação de fato será aplicada. “A disputa é pela apropriação da via pública. A democracia em uma cidade se mede pela largura de suas calçadas, pelos espaços reservados ao transporte público e à bicicleta. Com base nisso a gente sabe se uma cidade é democrática ou não. Se os pedestres são responsáveis por 30% dos deslocamentos, eles têm de ocupar 30% da via”, defende.
Rio sofre com a "paulistização" do trânsito
A sinuosidade de caminhos entre lagoas, rios e montanhas da capital fluminense prejudica a construção de grandes vias e a constituição de um sistema de metrô abrangente. Espremida entre o mar e a montanha, os 1.182 km2 da cidade abrigavam em 2011 quase 6,4 milhões de moradores e algo em torno de 2,4 milhões de carros, segundo dados do IBGE e do Detran-RJ. Mas especialistas em trânsito criticam a falta de planejamento do poder público para o setor.
Rodrigo Otávio
Rio de Janeiro - O maior problema no trânsito da cidade do Rio de Janeiro nos últimos três anos é o congestionamento a qualquer hora do dia. Se antes o motorista tinha ciência de que um trajeto levaria mais tempo para ser vencido nos horários do rush matinal ou noturno, atualmente em qualquer período do dia ele gastará mais tempo que o previsto para chegar a algum ponto da cidade.
“Moro no Grajaú e trabalho na praça Mauá. Meu horário de entrada é às 16 horas. Antigamente saía de casa de 30 a 35 minutos antes e chegava bem. Agora, é todo dia uma hora até chegar ao trabalho, que não é tão longe da minha casa. O trânsito do Rio está ficando igual ao de São Paulo, é engarrafamento durante todo o trajeto”, diz o analista de sistemas Vinicius Coelho.
O filho bastardo do maior poder de consumo do brasileiro nos últimos dez anos e dos incentivos fiscais para a indústria automotiva nos últimos três, além do aumento da população e da falta de reforma agrária no país, é a multiplicação dos automóveis nas ruas das cidades. Como, por mais que possam se expandir, elas têm limites geográficos, é fácil para a filha de cinco anos de Vinicius desenhar o especialista em computadores suando, enclausurado dentro de um carro, na tarefa escolar “a vida de papai”.
A ficção da filha de Vinicius é fruto da realidade testemunhada por um dos maiores especialistas de trânsito do Rio, o repórter aéreo Genílson Araújo, que há quase duas décadas faz voos diários para decifrar o “Pac-man automobilístico” aos ouvintes de diferentes estações. “Hoje em dia você vê uma coisa interessante, cada bairro tem o seu próprio congestionamento. Locomover-se entre os bairros é complicado no Rio, e se locomover no interior desses bairros também se tornou uma coisa infernal”, diz ele à Carta Maior.
Genílson aponta outra consequência do aumento do número de veículos trafegando. “Há também a falta de opções para estacionamento. Onde as pessoas vão guardar esse número enorme de carros? Será que todo prédio tem garagem? Tanto é verdade que um negócio da China hoje no Rio é estacionamento. Hoje em dia, se você for ao centro da cidade se gasta mais com o estacionamento do que com o combustível que você usou para se deslocar”, diz, referindo-se ao novo item da lista de queixas de motoristas. Nos estacionamentos privados, não raramente a tarifa horária começa em torno dos R$ 20, chegando à casa da centena caso o motorista guarde seu carro por uma tarde em um desses locais.
Sem planejamento
A situação do trânsito carioca é agravada pela singular geografia da cidade. Espremida entre o mar e a montanha, os 1.182 km2 da cidade abrigavam em 2011 quase 6,4 milhões de moradores e algo em torno de 2,4 milhões de carros, segundo dados da prefeitura, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RJ).
A sinuosidade de caminhos entre lagoas, rios e montanhas prejudica a construção de grandes vias. Para se fazer um sistema de metrô abrangente, é preciso transpor as dificuldades que esses acidentes naturais impõem. Ainda assim, especialistas em trânsito, como o engenheiro Fernando MacDowell, criticam a falta de planejamento do poder público na questão. “É preciso partir para uma política de transportes com visão sistêmica. Não podemos deixar de fazer vias. É preciso melhorar vias e melhorar o metrô. O Rio não faz um investimento importante de vias há anos. A última foi a Linha Amarela [ligação entre as zonas Norte e Oeste da cidade], em 1998”, afirma.
O engenheiro identifica, ainda, retrocessos e lentidão nas intervenções de melhoria no trânsito. “Transporte público você não faz da noite para o dia. Tem de se estabelecer uma política, um plano, e os governos o seguirem. Isso existia até algum tempo atrás. O que não dá é a Linha Vermelha [ligação entre a zona portuária e outros municípios fluminenses] levar 25 anos para aparecer e o metrô 20 anos para poder funcionar adequadamente. Enquanto isso, a cidade está crescendo e os automóveis chegando. Na verdade, o necessário é um planejamento objetivo”, cobra.
Avaliações
A prefeitura contra-ataca e divulga em seus canais oficiais a construção da Transolímpica – estrada interligando vários bairros da zona Oeste, aonde acontecerá grande parte das competições olímpicas de 2016 – e a implantação dos bilhetes únicos, em parceria com o governo estadual, e dos corredores expressos de ônibus BRT (Bus Rapid Transit, inexplicavelmente batizado em inglês) para o transporte público concedido à iniciativa privada.
Se a prefeitura e os concessionários quase vitalícios alardeiam os planos e obras como melhoras testadas e comprovadas, os usuários julgam. “Muitas vezes não dá tempo! Contando o tempo que se leva entre passar o bilhete na primeira roleta, o engarrafamento e a espera para o outro ônibus, já era”, protesta, fazendo referência ao Bilhete Único, o garçom Carlos Alberto Brasil, que mora na cidade de Duque de Caxias e trabalha no bairro carioca de Botafogo. Pelas regras do tíquete, o usuário paga R$ 4,95 e pode fazer duas viagens, inclusive em um ônibus intermunicipal, dentro do período de duas horas e meia.
Quanto ao sistema BRT as queixas são menores. Com duas faixas seletivas e número menor e mais espaçado de paradas, os ônibus cumprem o trajeto em menor tempo, mas muitas vezes obrigam o passageiro a percorrer a pé grandes distâncias até a parada específica de seu ônibus.
Avenida Brasil real
Outro obstáculo aos motoristas, e ainda no contexto das melhorias que a prefeitura propagandeia para as olimpíadas de 2016, são as obras que interditam grande parte da zona portuária da cidade. A região que se estende do centro da cidade ao início da avenida Brasil sofre uma grande remodelação, inclusive com planos de demolição de um viaduto de 5,5 quilômetros, e tem várias de suas ruas fechadas. Assim, os motoristas já enfrentam uma espécie de preliminar de engarrafamento antes de entrarem na mais importante via expressa da cidade.
Cortando 27 bairros em seus 58 quilômetros de extensão, a avenida Brasil, atual alvo da glamorização dos folhetins televisivos das organizações Globo, faz parte do caminho diário de mais de meio milhão de cidadãos e continua a campeã dos congestionamentos no Rio. Segundo pesquisa da própria prefeitura, em 2010, um morador da zona Oeste que trabalhava no Centro perdia cerca de cinco horas por dia em seus engarrafamentos.
“Moro no Grajaú e trabalho na praça Mauá. Meu horário de entrada é às 16 horas. Antigamente saía de casa de 30 a 35 minutos antes e chegava bem. Agora, é todo dia uma hora até chegar ao trabalho, que não é tão longe da minha casa. O trânsito do Rio está ficando igual ao de São Paulo, é engarrafamento durante todo o trajeto”, diz o analista de sistemas Vinicius Coelho.
O filho bastardo do maior poder de consumo do brasileiro nos últimos dez anos e dos incentivos fiscais para a indústria automotiva nos últimos três, além do aumento da população e da falta de reforma agrária no país, é a multiplicação dos automóveis nas ruas das cidades. Como, por mais que possam se expandir, elas têm limites geográficos, é fácil para a filha de cinco anos de Vinicius desenhar o especialista em computadores suando, enclausurado dentro de um carro, na tarefa escolar “a vida de papai”.
A ficção da filha de Vinicius é fruto da realidade testemunhada por um dos maiores especialistas de trânsito do Rio, o repórter aéreo Genílson Araújo, que há quase duas décadas faz voos diários para decifrar o “Pac-man automobilístico” aos ouvintes de diferentes estações. “Hoje em dia você vê uma coisa interessante, cada bairro tem o seu próprio congestionamento. Locomover-se entre os bairros é complicado no Rio, e se locomover no interior desses bairros também se tornou uma coisa infernal”, diz ele à Carta Maior.
Genílson aponta outra consequência do aumento do número de veículos trafegando. “Há também a falta de opções para estacionamento. Onde as pessoas vão guardar esse número enorme de carros? Será que todo prédio tem garagem? Tanto é verdade que um negócio da China hoje no Rio é estacionamento. Hoje em dia, se você for ao centro da cidade se gasta mais com o estacionamento do que com o combustível que você usou para se deslocar”, diz, referindo-se ao novo item da lista de queixas de motoristas. Nos estacionamentos privados, não raramente a tarifa horária começa em torno dos R$ 20, chegando à casa da centena caso o motorista guarde seu carro por uma tarde em um desses locais.
Sem planejamento
A situação do trânsito carioca é agravada pela singular geografia da cidade. Espremida entre o mar e a montanha, os 1.182 km2 da cidade abrigavam em 2011 quase 6,4 milhões de moradores e algo em torno de 2,4 milhões de carros, segundo dados da prefeitura, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RJ).
A sinuosidade de caminhos entre lagoas, rios e montanhas prejudica a construção de grandes vias. Para se fazer um sistema de metrô abrangente, é preciso transpor as dificuldades que esses acidentes naturais impõem. Ainda assim, especialistas em trânsito, como o engenheiro Fernando MacDowell, criticam a falta de planejamento do poder público na questão. “É preciso partir para uma política de transportes com visão sistêmica. Não podemos deixar de fazer vias. É preciso melhorar vias e melhorar o metrô. O Rio não faz um investimento importante de vias há anos. A última foi a Linha Amarela [ligação entre as zonas Norte e Oeste da cidade], em 1998”, afirma.
O engenheiro identifica, ainda, retrocessos e lentidão nas intervenções de melhoria no trânsito. “Transporte público você não faz da noite para o dia. Tem de se estabelecer uma política, um plano, e os governos o seguirem. Isso existia até algum tempo atrás. O que não dá é a Linha Vermelha [ligação entre a zona portuária e outros municípios fluminenses] levar 25 anos para aparecer e o metrô 20 anos para poder funcionar adequadamente. Enquanto isso, a cidade está crescendo e os automóveis chegando. Na verdade, o necessário é um planejamento objetivo”, cobra.
Avaliações
A prefeitura contra-ataca e divulga em seus canais oficiais a construção da Transolímpica – estrada interligando vários bairros da zona Oeste, aonde acontecerá grande parte das competições olímpicas de 2016 – e a implantação dos bilhetes únicos, em parceria com o governo estadual, e dos corredores expressos de ônibus BRT (Bus Rapid Transit, inexplicavelmente batizado em inglês) para o transporte público concedido à iniciativa privada.
Se a prefeitura e os concessionários quase vitalícios alardeiam os planos e obras como melhoras testadas e comprovadas, os usuários julgam. “Muitas vezes não dá tempo! Contando o tempo que se leva entre passar o bilhete na primeira roleta, o engarrafamento e a espera para o outro ônibus, já era”, protesta, fazendo referência ao Bilhete Único, o garçom Carlos Alberto Brasil, que mora na cidade de Duque de Caxias e trabalha no bairro carioca de Botafogo. Pelas regras do tíquete, o usuário paga R$ 4,95 e pode fazer duas viagens, inclusive em um ônibus intermunicipal, dentro do período de duas horas e meia.
Quanto ao sistema BRT as queixas são menores. Com duas faixas seletivas e número menor e mais espaçado de paradas, os ônibus cumprem o trajeto em menor tempo, mas muitas vezes obrigam o passageiro a percorrer a pé grandes distâncias até a parada específica de seu ônibus.
Avenida Brasil real
Outro obstáculo aos motoristas, e ainda no contexto das melhorias que a prefeitura propagandeia para as olimpíadas de 2016, são as obras que interditam grande parte da zona portuária da cidade. A região que se estende do centro da cidade ao início da avenida Brasil sofre uma grande remodelação, inclusive com planos de demolição de um viaduto de 5,5 quilômetros, e tem várias de suas ruas fechadas. Assim, os motoristas já enfrentam uma espécie de preliminar de engarrafamento antes de entrarem na mais importante via expressa da cidade.
Cortando 27 bairros em seus 58 quilômetros de extensão, a avenida Brasil, atual alvo da glamorização dos folhetins televisivos das organizações Globo, faz parte do caminho diário de mais de meio milhão de cidadãos e continua a campeã dos congestionamentos no Rio. Segundo pesquisa da própria prefeitura, em 2010, um morador da zona Oeste que trabalhava no Centro perdia cerca de cinco horas por dia em seus engarrafamentos.
Legado da elite predadora no péssimo comportamento ao volante
Velocidade além do limite, desobediência ao sinal vermelho e estacionamento sobre a calçada ou faixa de pedestre são as principais infrações de trânsito cometidas pelo motoristas do Rio de Janeiro. Especialistas veem raízes culturais e o sentimento de privilégio entre as classes altas como possíveis causas do desrespeito sistemático às normas.
Rodrigo Otávio
Rio de Janeiro - “He! He! Aí, Márcio, o Francisco para em sinal de trânsito fechado” (*). “É mesmo, he! he!”. Engana-se quem pensa que o diálogo acima é entre dois jovens em busca de afirmação. Ou ainda um caso de emergência. Em tom de assombro, o relato foi feito à Carta Maior por um profissional liberal de 67 anos, integrante da classe média alta carioca, ao contar uma trivial ida ao cinema durante um fim de semana. Os autores do comentário, um casal de amigos que estavam de carona, eram da mesma faixa etária e classe social. E não estavam com a mínima pressa.
Seria peculiar se não fosse trágico. Segundo pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CMN), no Rio de Janeiro, em 2008, morreram 14,4 pessoas para cada cem mil habitantes em acidentes de trânsito. Em São Paulo, a média ficou em 14,6 pessoas, mas os números da capital automobilística do país são infinitamente maiores do que os da capital fluminense, agravando a situação carioca na comparação.
De acordo com dados do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a capital paulista tinha cerca de 6,9 milhões de carros para quase 11,4 milhões de habitantes em 2011 – um carro para cada 1,6 habitante. No Rio, no mesmo ano, eram cerca de 2,4 milhões de carros para 6,4 milhões de residentes – um carro para cada 2,6.
Enigma
Acontece que “cariocas não gostam de sinal fechado”. De novo, peculiar e até romântico na poesia da música de Adriana Calcanhoto, mas violento e triste na vida real e no exercício da cidadania. Sem explicação fora da poesia, a questão é levada a níveis sociológicos, e ainda assim inexplicável. “É uma história longa do ponto de vista da cultura. O abuso da informalidade, o desrespeito às normas, ignorar o que deve ser feito. E a corrupção também, de quem deveria fiscalizar. A gente tem essa cultura da informalidade e da irregularidade no Rio”, arrisca Ignácio Cano, sociólogo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Mas por que o (ruim) comportamento de uma parte da população do país no quesito trânsito é tão marcante que chega a entrar para a cultura popular através da música? “O Rio tem uma longa história nessa direção. Por causa da capitalidade, as leis que se estabeleceram no país saíram daqui, assim como os privilégios, a falta de padrões. Mas é difícil saber exatamente o porquê”, afirma o sociólogo, reconhecendo um não convincente nexo entre o fato de a cidade ter sido a capital do país e o padrão de desrespeito às normas de sua população.
O desrespeito às normas e o sentimento de privilégio, principalmente entre as classes altas, é visível em outra “máxima” da cidade: o estacionamento irregular sobre a calçada. Um dos esportes dos salões locais é aproveitar o chamariz internacional do Rio para compará-lo urbanisticamente com as reluzentes Nova York e Paris. “Inclusive, no trânsito, o táxi também é amarelo, como em Nova York”, dizem os mais afoitos. E completam alardeando a mistura de bela arquitetura e localização do hotel Copacabana Palace para equipará-lo com o norte-americano Plaza e o francês Ritz. Mas têm que sorrir amarelo, ou emitirem um datado olhar de sou “amigo do rei” ao serem lembrados que uma simples pesquisa no Google Street View não mostra carros estacionados irregularmente na fachada desses hotéis, como é praxe na calçada do hotel praiano.
As cinco mais
Sendo o carioca um campeão da deseducação ao volante, dados do Detran local comprovam um padrão comportamental a partir da repetição de infrações. Na variação dos 12 meses de 2011, alteraram-se nos degraus mais altos do pódio a velocidade além do limite, a desobediência ao sinal vermelho e o estacionamento sobre a calçada ou faixa de pedestre. Logo atrás vieram o uso irregular da faixa seletiva e a documentação fora de ordem.
Com base no padrão comportamental do motorista, sai-se da esfera sociológica da população e entra-se no caso psicológico do indivíduo para tentar se entender a patologia carioca. Para o professor da Uerj e ex-presidente do Conselho Regional de Psicologia Carlos Alberto Absalão, “o que chama atenção é a agressividade do motorista. O sujeito aparentemente pacato transforma-se em um monstro ao volante. Uma ultrapassagem fere os brios e se começa uma perseguição implacável. Seria interessante pegar um sujeito desses nesse momento e perguntar o porquê daquilo”, afirma ele, em meio a barulhos de bruscas freadas de automóveis, sem encontrar a raiz do comportamento. “Qual a causa? A gente não sabe, observa-se o fenômeno em si, se pode até descrever. Agora, a causa? Estabelecer um nexo causal... eu não arriscaria”, completa.
Ciranda
Se os especialistas comportamentais não conseguem definir com exatidão as causas dos hábitos que transformam o tráfego em uma babel, os motoristas usam o atalho de culpar o próximo, e todos culpam as autoridades imediatas, que fecham o ciclo ao apontarem que “o mau exemplo vem de cima”. “O motorista do transporte alternativo é educado, o do táxi também. O motorista do carro particular é que tem aquela pressa. O cara acorda às 10 horas e tem que estar no trabalho às 10 horas, então causa batida, causa problema no trânsito”, afirma Ricardo Marquês, motorista que faz o trajeto Praça XV-Méier em uma das muitas cooperativas de vans que pululam na cidade.
Já o motorista André Machado, que diariamente desloca-se da Barra da Tijuca ao Centro, contabiliza as irregularidades de ônibus e vans. “Na avenida Ayrton Senna os ônibus fazem fila quádrupla. Dizem que é falta de paciência do carioca para dirigir, mas não é não. É falta de educação mesmo, e falta de um guarda municipal dar multa”.
Por seu lado, a contribuição mais visível da prefeitura para a selvageria sobre rodas foi a controversa lei, depois revogada e reativada, sobre a não necessidade de se parar em sinal de trânsito fechado depois das 22 horas. A justificativa foi a violência local, deixando clara a opção pela segurança do cidadão que possui um bem móvel em detrimento do pedestre.
Em outros casos, voltam-se os velhos privilégios para diminuírem o poder da lei. Em recente episódio, a reportagem abordou um guarda municipal ao flagrar um imponente automóvel parado com as quatro rodas em cima da calçada em frente a um edifício residencial. “Ih... aí não dá. Já cansei de multar, mas o doutor aí é desembargador e manda tirar as multas lá na Corregedoria. Ele já até me avisou que não adianta eu multar”, relatou o guarda municipal.
Um longo caminho
O sociólogo Ignácio Cano não vê outra saída para a situação a não ser as campanhas educativas. “Tende a melhorar, porque... piorar é difícil [risos]. Acho que tem de melhorar a fiscalização e ter campanha de educação. Em algumas cidades há, em Bogotá [Colômbia] houve inclusive palhaços que saíam dando cartões vermelhos e amarelos no trânsito. Enfim, há várias possibilidades com campanhas específicas para a educação no trânsito”, diz.
(*) Nomes fictícios
Seria peculiar se não fosse trágico. Segundo pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CMN), no Rio de Janeiro, em 2008, morreram 14,4 pessoas para cada cem mil habitantes em acidentes de trânsito. Em São Paulo, a média ficou em 14,6 pessoas, mas os números da capital automobilística do país são infinitamente maiores do que os da capital fluminense, agravando a situação carioca na comparação.
De acordo com dados do Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a capital paulista tinha cerca de 6,9 milhões de carros para quase 11,4 milhões de habitantes em 2011 – um carro para cada 1,6 habitante. No Rio, no mesmo ano, eram cerca de 2,4 milhões de carros para 6,4 milhões de residentes – um carro para cada 2,6.
Enigma
Acontece que “cariocas não gostam de sinal fechado”. De novo, peculiar e até romântico na poesia da música de Adriana Calcanhoto, mas violento e triste na vida real e no exercício da cidadania. Sem explicação fora da poesia, a questão é levada a níveis sociológicos, e ainda assim inexplicável. “É uma história longa do ponto de vista da cultura. O abuso da informalidade, o desrespeito às normas, ignorar o que deve ser feito. E a corrupção também, de quem deveria fiscalizar. A gente tem essa cultura da informalidade e da irregularidade no Rio”, arrisca Ignácio Cano, sociólogo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Mas por que o (ruim) comportamento de uma parte da população do país no quesito trânsito é tão marcante que chega a entrar para a cultura popular através da música? “O Rio tem uma longa história nessa direção. Por causa da capitalidade, as leis que se estabeleceram no país saíram daqui, assim como os privilégios, a falta de padrões. Mas é difícil saber exatamente o porquê”, afirma o sociólogo, reconhecendo um não convincente nexo entre o fato de a cidade ter sido a capital do país e o padrão de desrespeito às normas de sua população.
O desrespeito às normas e o sentimento de privilégio, principalmente entre as classes altas, é visível em outra “máxima” da cidade: o estacionamento irregular sobre a calçada. Um dos esportes dos salões locais é aproveitar o chamariz internacional do Rio para compará-lo urbanisticamente com as reluzentes Nova York e Paris. “Inclusive, no trânsito, o táxi também é amarelo, como em Nova York”, dizem os mais afoitos. E completam alardeando a mistura de bela arquitetura e localização do hotel Copacabana Palace para equipará-lo com o norte-americano Plaza e o francês Ritz. Mas têm que sorrir amarelo, ou emitirem um datado olhar de sou “amigo do rei” ao serem lembrados que uma simples pesquisa no Google Street View não mostra carros estacionados irregularmente na fachada desses hotéis, como é praxe na calçada do hotel praiano.
As cinco mais
Sendo o carioca um campeão da deseducação ao volante, dados do Detran local comprovam um padrão comportamental a partir da repetição de infrações. Na variação dos 12 meses de 2011, alteraram-se nos degraus mais altos do pódio a velocidade além do limite, a desobediência ao sinal vermelho e o estacionamento sobre a calçada ou faixa de pedestre. Logo atrás vieram o uso irregular da faixa seletiva e a documentação fora de ordem.
Com base no padrão comportamental do motorista, sai-se da esfera sociológica da população e entra-se no caso psicológico do indivíduo para tentar se entender a patologia carioca. Para o professor da Uerj e ex-presidente do Conselho Regional de Psicologia Carlos Alberto Absalão, “o que chama atenção é a agressividade do motorista. O sujeito aparentemente pacato transforma-se em um monstro ao volante. Uma ultrapassagem fere os brios e se começa uma perseguição implacável. Seria interessante pegar um sujeito desses nesse momento e perguntar o porquê daquilo”, afirma ele, em meio a barulhos de bruscas freadas de automóveis, sem encontrar a raiz do comportamento. “Qual a causa? A gente não sabe, observa-se o fenômeno em si, se pode até descrever. Agora, a causa? Estabelecer um nexo causal... eu não arriscaria”, completa.
Ciranda
Se os especialistas comportamentais não conseguem definir com exatidão as causas dos hábitos que transformam o tráfego em uma babel, os motoristas usam o atalho de culpar o próximo, e todos culpam as autoridades imediatas, que fecham o ciclo ao apontarem que “o mau exemplo vem de cima”. “O motorista do transporte alternativo é educado, o do táxi também. O motorista do carro particular é que tem aquela pressa. O cara acorda às 10 horas e tem que estar no trabalho às 10 horas, então causa batida, causa problema no trânsito”, afirma Ricardo Marquês, motorista que faz o trajeto Praça XV-Méier em uma das muitas cooperativas de vans que pululam na cidade.
Já o motorista André Machado, que diariamente desloca-se da Barra da Tijuca ao Centro, contabiliza as irregularidades de ônibus e vans. “Na avenida Ayrton Senna os ônibus fazem fila quádrupla. Dizem que é falta de paciência do carioca para dirigir, mas não é não. É falta de educação mesmo, e falta de um guarda municipal dar multa”.
Por seu lado, a contribuição mais visível da prefeitura para a selvageria sobre rodas foi a controversa lei, depois revogada e reativada, sobre a não necessidade de se parar em sinal de trânsito fechado depois das 22 horas. A justificativa foi a violência local, deixando clara a opção pela segurança do cidadão que possui um bem móvel em detrimento do pedestre.
Em outros casos, voltam-se os velhos privilégios para diminuírem o poder da lei. Em recente episódio, a reportagem abordou um guarda municipal ao flagrar um imponente automóvel parado com as quatro rodas em cima da calçada em frente a um edifício residencial. “Ih... aí não dá. Já cansei de multar, mas o doutor aí é desembargador e manda tirar as multas lá na Corregedoria. Ele já até me avisou que não adianta eu multar”, relatou o guarda municipal.
Um longo caminho
O sociólogo Ignácio Cano não vê outra saída para a situação a não ser as campanhas educativas. “Tende a melhorar, porque... piorar é difícil [risos]. Acho que tem de melhorar a fiscalização e ter campanha de educação. Em algumas cidades há, em Bogotá [Colômbia] houve inclusive palhaços que saíam dando cartões vermelhos e amarelos no trânsito. Enfim, há várias possibilidades com campanhas específicas para a educação no trânsito”, diz.
(*) Nomes fictícios
Em Salvador, transporte público é motivo de piada
Sem nenhuma linha de ônibus licitada e com um metrô em construção há 13 anos, a capital baiana assistiu sua frota de carros praticamente dobrar desde 2007 e agora se prepara para ser uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. Topografia da cidade requer muitos mais elevadores como o Lacerda, defendem estudiosos.
Maíra Kubík Mano
Salvador - “Confirmada a inauguração do metrô de Salvador”, diz o desenho animado em uma propaganda de TV. Risadas, muitas risadas ao fundo. Em seguida, a explicação: “FHUBÁ, Festival de Humor da Bahia”.
Para quem não é baiano, a brincadeira pode soar estranha. Mas basta saber que o metrô está há 13 anos em construção para entender. Previsto para funcionar em 2003, o atraso das obras, de responsabilidade da Prefeitura, transferiu a inauguração para 2008. Porém, apenas no final de 2011 o sistema começou a operar, em fase de testes, e até hoje não está aberto ao público.
O tamanho da linha é outra anedota local: dos 48 quilômetros projetados inicialmente, somente seis estão prontos. O gasto, antes estimado em R$ 307 milhões, é até agora de cerca de R$ 720 milhões, segundo a Secretaria Municipal de Transportes. Em 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) indicou o superfaturamento nas obras do metrô. Entre outras questões, constatou o pagamento indevido por alteração do projeto e a ausência de critério de preços no edital para contratação de serviços de ventilação, elevadores e escadas rolantes. O resultado foi a retenção parcial dos pagamentos.
“O metrô é lenda. Agora, nesta eleição, já tem gente até falando em trem aéreo”, diverte-se a comerciante Teane, que será uma das 25 mil pessoas beneficiadas pela obra. Hoje, ela gasta entre uma e duas horas de ônibus para deslocar-se de casa para o trabalho.
“Dizem que nós não temos metrô. Isso não é verdade”, questiona Lucas Portela, presidente da Associação Psicólogos do Trânsito e Mobilidade Humana e coordenador do Grupo de Estudos em Motorcracia e Carrodependência da Comissão de Mobilidade Humana e Trânsito do Conselho Regional de Psicologia. “Temos um dos mais antigos do mundo, que é o Elevador Lacerda [inaugurado em 1873 para ligar a Cidade Baixa à Cidade Alta]”, afirma. “Só que é vertical, não horizontal”.
Topografia singular
Para o estudioso em mobilidade urbana, o Estado deveria investir mais em ligações como essa, adequadas à geografia da cidade. “Eu não sou contra o metrô. Ele já está pronto, é melhor funcionar. Mas, do ponto de vista topográfico, somos muito mais parecidos com São Francisco, nos Estados Unidos, que não tem metrô na região central. Eles preferiram adotar o bonde, porque não fazia sentido construir embaixo da terra com cumes tão altos. Em Salvador é a mesma situação”.
Portela cita a tese de Doutorado do geógrafo Milton Santos (falecido em 2001), que tem como tema o centro de Salvador, para ilustrar seu argumento. “É uma cidade de colinas, uma cidade peninsular, uma cidade de praia, uma cidade que avança para o mar com as palafitas das invasões de ltapagipe, cidade de dois andares, como é frequente dizer-se, pois o centro se divide em uma Cidade Alta e uma Cidade Baixa”, descreve Santos, no texto de 1958.
A solução proposta por Portela não é nova. A capital baiana já tem outras três ligações mecânicas semelhantes, denominadas “plano inclinado”: o Gonçalves, que liga o bairro do Comércio ao Pelourinho, o Pilar, entre o Comércio e Santo Antônio, e o Liberdade-Calçada. O último foi inaugurado em 1967, os dois primeiros são do século 19. Um outro elevador, o do Taboão, está parado. “Seu esqueleto, em ferro fundido, ainda está lá, visível pra quem tenta subir a Ladeira do Taboão por baixo”, aponta Portela.
Hoje, porém, poucas pessoas têm acesso aos elevadores e planos inclinados. Eles respondem por apenas 2,7% das viagens realizadas com transportes públicos, o que impacta negativamente também nos deslocamentos a pé ou de bicicleta – atualmente, Salvador tem 20 quilômetros de ciclovias, mas o uso mais frequente é para lazer. “A solução para Salvador é compartilhar vias nas cumeadas [linha formada pelos cumes das montanhas]. Sobe uma e acabou, já está em cima. Aí fica mais fácil para caminhar. Se a ladeira é problema, resolve-se com elevador. É preciso garantir o trânsito de um topo de morro para outro sem tocar no vale. Caberia também um VLT, bonde de alta velocidade, que conseguisse chegar nas cumeadas”, diz o psicólogo.
Atualmente, a grande maioria dos deslocamentos em transporte público, 95,3%, é realizada em ônibus ou vans, que funcionam de maneira precária. “Salvador nunca licitou linha de ônibus. Todos são ilegais. Não se conseguiu fazer com licitação”, relata Portela. O assunto foi pauta do noticiário local durante a última greve dos rodoviários, em maio deste ano, quando a cidade praticamente parou. A primeira licitação, aguardada há nada menos que 50 anos, ainda está sendo elaborada.
“O transporte coletivo por ônibus apresenta uma velocidade média de 14 km/h, sendo que o recomendável é velocidades acima de 20 km/h. O tempo de espera é acima de 19 minutos, sendo o recomendável até 10 minutos. O tempo de percurso em viagens de 10 km é de 35 minutos, refletindo a baixa velocidade”, observa Juan Pedro Moreno Delgado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em Engenharia de Transportes, em uma análise publicada recentemente. Ele denuncia ainda a existência de “demandas cativas em bairros periféricos da cidade”, que são atendidas por uma única linha e empresa nos seus deslocamentos.
Trânsito carregado
Delgado também acredita que o relevo é uma das questões centrais para resolver o nó da mobilidade urbana em Salvador. “Os moradores das cumeadas são penalizados com uma menor frequência do serviço de transporte e menor fluidez, enfrentando velocidades baixíssimas nos horários de pico (9 a 15 km/hora). Nas avenidas de vale, verifica-se um melhor desempenho do serviço de ônibus em termos de frequência e velocidade. Ambos os subsistemas são interligados deficitariamente e poderiam ser conectados de maneira eficaz por planos inclinados ou elevadores, por meio dos quais pedestres e ciclistas poderiam acessar as avenidas de vale e, por conseguinte, o transporte de massa fazendo percursos de até 600 metros, usando assim o carro com menos frequência”, afirma o estudioso.
A realidade, contudo, não poderia estar mais distante do futuro. “Com a eleição de Jaques Wagner [PT], em 2006, falou-se em retomar as construções. Propuseram ligar a rua de Laranjeiras, no Pelourinho, ao Campo da Pólvora. Seria mais um elevador, que garantiria o transporte. Mas esse projeto está muito parado”, lamenta Lucas Portela.
Além disso, a cada ano o número de veículos particulares cresce nas ruas da cidade. Segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Salvador teve um crescimento de 44,8% na frota de carros entre 2007 e 2011. Isso equivale a um carro para cada três habitantes.
“O pior trecho é a avenida Paralela”, diz Nalilton, vendedor de acarajé. “É muita gente, muito edifício num lugar só”. A Paralela, apelido dado à avenida Luis Viana Filho por correr paralelamente à orla, é a principal rota de ligação entre o aeroporto e o centro da cidade, justamente um dos pontos onde o transporte deveria funcionar mais adequadamente para receber a Copa do Mundo de 2014. “Hoje ninguém mais quer ser taxista do aeroporto. A avenida Paralela é um inferno. Tem um ano e meio mais ou menos que os prédios lá começaram a ficar prontos. Tem shoppings, loja de construção, universidades. O trânsito lá é horrível. Antes não tinha nada lá, era mangue”, diz o taxista Andrade.
A solução dada pelos governos federal, estadual e municipal foi a construção do metrô no corredor central da via, mas, por enquanto, as obras não saíram do papel. Depois de muitas idas e vindas, o edital para a linha 2, que será feita via Parceria Público-Privada, foi lançado por Jaques Wagner em 20 de junho deste ano e ficará em consulta pública durante 60 dias. A população desconfia que tudo esteja pronto a tempo do evento da Fifa: “É meio difícil de acreditar, né? A linha 1 está aí há tantos anos. E essa nem começou a ser feita”, diz o taxista Antônio Carlos.
Para quem não é baiano, a brincadeira pode soar estranha. Mas basta saber que o metrô está há 13 anos em construção para entender. Previsto para funcionar em 2003, o atraso das obras, de responsabilidade da Prefeitura, transferiu a inauguração para 2008. Porém, apenas no final de 2011 o sistema começou a operar, em fase de testes, e até hoje não está aberto ao público.
O tamanho da linha é outra anedota local: dos 48 quilômetros projetados inicialmente, somente seis estão prontos. O gasto, antes estimado em R$ 307 milhões, é até agora de cerca de R$ 720 milhões, segundo a Secretaria Municipal de Transportes. Em 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) indicou o superfaturamento nas obras do metrô. Entre outras questões, constatou o pagamento indevido por alteração do projeto e a ausência de critério de preços no edital para contratação de serviços de ventilação, elevadores e escadas rolantes. O resultado foi a retenção parcial dos pagamentos.
“O metrô é lenda. Agora, nesta eleição, já tem gente até falando em trem aéreo”, diverte-se a comerciante Teane, que será uma das 25 mil pessoas beneficiadas pela obra. Hoje, ela gasta entre uma e duas horas de ônibus para deslocar-se de casa para o trabalho.
“Dizem que nós não temos metrô. Isso não é verdade”, questiona Lucas Portela, presidente da Associação Psicólogos do Trânsito e Mobilidade Humana e coordenador do Grupo de Estudos em Motorcracia e Carrodependência da Comissão de Mobilidade Humana e Trânsito do Conselho Regional de Psicologia. “Temos um dos mais antigos do mundo, que é o Elevador Lacerda [inaugurado em 1873 para ligar a Cidade Baixa à Cidade Alta]”, afirma. “Só que é vertical, não horizontal”.
Topografia singular
Para o estudioso em mobilidade urbana, o Estado deveria investir mais em ligações como essa, adequadas à geografia da cidade. “Eu não sou contra o metrô. Ele já está pronto, é melhor funcionar. Mas, do ponto de vista topográfico, somos muito mais parecidos com São Francisco, nos Estados Unidos, que não tem metrô na região central. Eles preferiram adotar o bonde, porque não fazia sentido construir embaixo da terra com cumes tão altos. Em Salvador é a mesma situação”.
Portela cita a tese de Doutorado do geógrafo Milton Santos (falecido em 2001), que tem como tema o centro de Salvador, para ilustrar seu argumento. “É uma cidade de colinas, uma cidade peninsular, uma cidade de praia, uma cidade que avança para o mar com as palafitas das invasões de ltapagipe, cidade de dois andares, como é frequente dizer-se, pois o centro se divide em uma Cidade Alta e uma Cidade Baixa”, descreve Santos, no texto de 1958.
A solução proposta por Portela não é nova. A capital baiana já tem outras três ligações mecânicas semelhantes, denominadas “plano inclinado”: o Gonçalves, que liga o bairro do Comércio ao Pelourinho, o Pilar, entre o Comércio e Santo Antônio, e o Liberdade-Calçada. O último foi inaugurado em 1967, os dois primeiros são do século 19. Um outro elevador, o do Taboão, está parado. “Seu esqueleto, em ferro fundido, ainda está lá, visível pra quem tenta subir a Ladeira do Taboão por baixo”, aponta Portela.
Hoje, porém, poucas pessoas têm acesso aos elevadores e planos inclinados. Eles respondem por apenas 2,7% das viagens realizadas com transportes públicos, o que impacta negativamente também nos deslocamentos a pé ou de bicicleta – atualmente, Salvador tem 20 quilômetros de ciclovias, mas o uso mais frequente é para lazer. “A solução para Salvador é compartilhar vias nas cumeadas [linha formada pelos cumes das montanhas]. Sobe uma e acabou, já está em cima. Aí fica mais fácil para caminhar. Se a ladeira é problema, resolve-se com elevador. É preciso garantir o trânsito de um topo de morro para outro sem tocar no vale. Caberia também um VLT, bonde de alta velocidade, que conseguisse chegar nas cumeadas”, diz o psicólogo.
Atualmente, a grande maioria dos deslocamentos em transporte público, 95,3%, é realizada em ônibus ou vans, que funcionam de maneira precária. “Salvador nunca licitou linha de ônibus. Todos são ilegais. Não se conseguiu fazer com licitação”, relata Portela. O assunto foi pauta do noticiário local durante a última greve dos rodoviários, em maio deste ano, quando a cidade praticamente parou. A primeira licitação, aguardada há nada menos que 50 anos, ainda está sendo elaborada.
“O transporte coletivo por ônibus apresenta uma velocidade média de 14 km/h, sendo que o recomendável é velocidades acima de 20 km/h. O tempo de espera é acima de 19 minutos, sendo o recomendável até 10 minutos. O tempo de percurso em viagens de 10 km é de 35 minutos, refletindo a baixa velocidade”, observa Juan Pedro Moreno Delgado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em Engenharia de Transportes, em uma análise publicada recentemente. Ele denuncia ainda a existência de “demandas cativas em bairros periféricos da cidade”, que são atendidas por uma única linha e empresa nos seus deslocamentos.
Trânsito carregado
Delgado também acredita que o relevo é uma das questões centrais para resolver o nó da mobilidade urbana em Salvador. “Os moradores das cumeadas são penalizados com uma menor frequência do serviço de transporte e menor fluidez, enfrentando velocidades baixíssimas nos horários de pico (9 a 15 km/hora). Nas avenidas de vale, verifica-se um melhor desempenho do serviço de ônibus em termos de frequência e velocidade. Ambos os subsistemas são interligados deficitariamente e poderiam ser conectados de maneira eficaz por planos inclinados ou elevadores, por meio dos quais pedestres e ciclistas poderiam acessar as avenidas de vale e, por conseguinte, o transporte de massa fazendo percursos de até 600 metros, usando assim o carro com menos frequência”, afirma o estudioso.
A realidade, contudo, não poderia estar mais distante do futuro. “Com a eleição de Jaques Wagner [PT], em 2006, falou-se em retomar as construções. Propuseram ligar a rua de Laranjeiras, no Pelourinho, ao Campo da Pólvora. Seria mais um elevador, que garantiria o transporte. Mas esse projeto está muito parado”, lamenta Lucas Portela.
Além disso, a cada ano o número de veículos particulares cresce nas ruas da cidade. Segundo pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Salvador teve um crescimento de 44,8% na frota de carros entre 2007 e 2011. Isso equivale a um carro para cada três habitantes.
“O pior trecho é a avenida Paralela”, diz Nalilton, vendedor de acarajé. “É muita gente, muito edifício num lugar só”. A Paralela, apelido dado à avenida Luis Viana Filho por correr paralelamente à orla, é a principal rota de ligação entre o aeroporto e o centro da cidade, justamente um dos pontos onde o transporte deveria funcionar mais adequadamente para receber a Copa do Mundo de 2014. “Hoje ninguém mais quer ser taxista do aeroporto. A avenida Paralela é um inferno. Tem um ano e meio mais ou menos que os prédios lá começaram a ficar prontos. Tem shoppings, loja de construção, universidades. O trânsito lá é horrível. Antes não tinha nada lá, era mangue”, diz o taxista Andrade.
A solução dada pelos governos federal, estadual e municipal foi a construção do metrô no corredor central da via, mas, por enquanto, as obras não saíram do papel. Depois de muitas idas e vindas, o edital para a linha 2, que será feita via Parceria Público-Privada, foi lançado por Jaques Wagner em 20 de junho deste ano e ficará em consulta pública durante 60 dias. A população desconfia que tudo esteja pronto a tempo do evento da Fifa: “É meio difícil de acreditar, né? A linha 1 está aí há tantos anos. E essa nem começou a ser feita”, diz o taxista Antônio Carlos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário