Publicado em 25 de novembro de 2012 no
VioMundo.
Os recentes atos públicos contra o julgamento político a que foram submetidos dirigentes petistas como José Dirceu e José Genoíno levaram setores da grande imprensa a tentar pautar o Partido dos Trabalhadores e o próprio governo Dilma, sugerindo que não lhes interessaria a defesa de réus condenados, pois eles pertenceriam ao passado.
Todavia a esquerda, e não só a do PT felizmente tem outra avaliação. A judicialização da política e a politização da justiça aprofundam a repressão seletiva contra os movimentos sociais, restaurando práticas superadas na história do Brasil. A esdrúxula interpretação que o STF concedeu à assim chamada teoria do domínio do fato poderá e provavelmente será usada contra o MST, o movimento estudantil, os sindicalistas etc.
Trata-se de uma inflexão que se põe na contramão do avanço democrático conquistado pelo país desde o fim da Ditadura Militar.
Entre nós, também a democracia passou a ser vista como um valor universal e se tornou cada dia mais difícil julgar os opositores segundo critérios assumidamente políticos. Como também se faz mais difícil manter políticas econômicas de gerenciamento de crises contra os trabalhadores por governos eleitos regularmente. Na arena militar tornou-se contraproducente defender guerras de agressão e de conquista dirigidas por “Estados Democráticos”.
Para contornar essas dificuldades, a primeira “solução” encontrada consiste em ver a economia como se fosse uma organização natural. Assim, as eleições se limitariam à escolha de gestores com maior ou menor sensibilidade social. A gestão da economia deveria ser encaminhada por técnicos e por funcionários de bancos centrais “independentes”.
A segunda saída dentro da “democracia” levou à retomada do conceito de guerra justa, praticada supostamente em nome de valores universais. As guerras contra Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e Palestina foram “justificadas” a partir dessa doutrina.
A terceira, e que mais nos interessa no momento, consiste na tentativa de transformar demandas sociais e políticas em questões similares à da justiça comum. Trata-se de um retrocesso, até mesmo em relação ao velho Presidente Washington Luiz, que explicitava o caráter repressivo de seu governo admitindo que a questão social era caso de polícia. Mas é também um retrocesso perante as práticas da própria ditadura militar a qual distinguia presos políticos e comuns.
Cabe reconhecer que se trata por outro lado, de um avanço da sofisticação das formas de dominação. Assim como a economia é naturalizada e a guerra é “humanizada”, a ação política é limitada e penalizada pelo ordenamento jurídico que se justifica em nome de um suposto conteúdo “ético”.
Que o PT e o atual governo tenham se iludido acerca da correspondência necessária dessas manifestações com a atual fase de desenvolvimento do capitalismo não nos deve surpreender. Eles fazem parte do sistema no qual se colocam como polo antitético interno. A atual crise revela mais uma vez que o capital e seus governos buscam conter a queda da taxa média de lucro através da destruição de direitos duramente conquistados pelos trabalhadores. Claro, em nome da racionalidade econômica, da democracia e do Direito.
Afinal, ninguém pode reclamar da taxa de juros, posto que ela é um preço que se autodefine no mercado como qualquer outro. Ninguém deve se insurgir contra as agressões imperialistas, já que elas são intervenções humanitárias. E quem vai se levantar para defender “criminosos comuns”?
Que um julgamento seja um “marco histórico” justamente com dirigentes do PT no banco dos réus; que ministros do STF, numa simbiose estranha com os meios de comunicação tenham cobertura televisiva de celebridades; que racistas contumazes tenham recentemente descoberto num negro um herói de ocasião; que o cerne da tese do Procurador Geral da República seja comprovadamente falsa; que os crimes eleitorais de alguns dos acusados (graves em si mesmos) tenham se transformado “em maior atentado à República”; que o Ex-Ministro José Dirceu, contra quem não se encontrou prova alguma, seja o mais gravemente apenado de todos os deputados julgados; tudo isso seria cômico se não fosse apenas o anúncio de uma guerra de extermínio contra a esquerda.
A maioria do eleitorado rejeitou o uso político de escândalos e literalmente votou contra o STF. Que juízes em nome de leis casuísticas possam cassar mandatos populares de pessoas eleitas pelo povo é um exercício de autoritarismo inédito em nosso país. A atual configuração da lei eleitoral procura tutelar o eleitor, considerando-o inapto para exercer seu democrático direito à livre escolha de seus representantes. Parte-se do primado “iluminista” de que os eleitores estão mergulhados nas trevas e não conhecem o passado e as ações dos candidatos. Mas, em nome de que princípio um juiz se arvora o direito de cassar a vontade popular?
É evidente que toda justiça corresponde à ideologia dominante, mas ela deve repelir a violação de ritos processuais que garantem a sua aparente neutralidade. A politização explícita da justiça cobrará o seu preço porque a história não para. Chegará o momento de limitar o mandato dos juízes e exigir sua escolha mediante eleições diretas. Que se comportem como políticos é mais do que normal. Mas não que sejam ditadores vitalícios.
Lincoln Secco é Professor de História Contemporânea na USP e autor de “A História do PT” (São Paulo, Ateliê Editorial)
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