quarta-feira, 28 de março de 2012

Rio e Porto Alegre: as duas caras da ditadura

SUL 21 - Luiz Cláudio Cunha

Neste fim de semana, o Brasil verá as duas caras da maior tragédia política do país: a mais longa ditadura de sua história.

Na quinta-feira (29), no Rio de Janeiro, a face da mentira, a cargo dos nostálgicos do regime de força, vai se mostrar na sede do Clube Militar, na avenida Rio Branco, no centro da cidade, para festejar o 48° aniversário do que chamam de “Revolução Democrática e Redentora de 31 de Março de 1964”, a chamada ‘contrarrevolução’ que evitou a ‘comunização’ do país.

A partir de sexta-feira (30), em Porto Alegre, a face da verdade, escancarada por entidades e militantes de direitos humanos, será exibida pelos que vão recordar a cara mais perversa do golpe de 1964, o movimento civil-militar que derrubou o presidente João Goulart e mergulhou o país numa treva de 21 anos marcada por violência, prisões, tortura, desaparecimentos forçados, cassações de mandatos políticos, exílio, censura e medo.

O 5° Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça, promovido pela Assembleia Legislativa gaúcha e pelo Movimento de Direitos Humanos e Justiça, vai discutir as consequências da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, as obrigações ainda não cumpridas para adequar a lei brasileira à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade, como tortura e desaparecimento, e o alcance da Comissão da Verdade, criada mas ainda não instalada no Brasil.

O advento da Comissão da Verdade é o pano de fundo da inquietação militar, principalmente de setores militares mais antigos, já na reserva e com suas digitais nos crimes mais violentos da época da ditadura. Parlamentares, juristas, jornalistas e entidades de direitos humanos do Cone Sul e da Europa vão participar do encontro de Porto Alegre, que termina no domingo, 1° de abril, dia universal da mentira, com uma visita à desativada Ilha do Presídio, no meio do rio Guaíba, antigo centro de torturas e tormentos para dissidentes políticos presos pelo DOPS.

O Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça em março em Porto Alegre é a sequência de reuniões semelhantes ocorridas em outros países do Cone Sul, sempre na data de seus respectivos golpes de Estado. O primeiro aconteceu em Buenos Aires (golpe de 24 de março de 1976), seguido pelos de Montevidéu (golpe em 27 de junho de 1973) e de Santiago do Chile (golpe em 11 de setembro de 1973).

A primeira mesa de Porto Alegre, na sexta-feira, fará um paralelo entre os casos da guerrilha do Araguaia e do desaparecimento do casal uruguaio Gelman, sequestrado em Buenos Aires em 1976 por comandos da ditadura de Montevidéu. Nora do mais famoso poeta vivo argentino Juan Gelman, Maria Cláudia Garcia Gelman foi presa grávida, deu à luz na prisão, foi torturada, morta e desaparecida. O bebê, Macarena, foi criado por um casal de policiais da repressão uruguaia e só veio a ser identificada em 2000, aos 24 anos. Macarena Gelman fará parte da mesa de debates na Assembléia gaúcha, nesta sexta-feira.

A neta e o avô entraram com um processo contra o Uruguai, na Corte de Direitos Humanos da OEA, que condenou o país pelo sequestro. O Brasil foi condenado também na OEA por não cumprir a determinação de investigar a repressão no Araguaia e a punição aos responsáveis por sequestros, torturas e desaparecimentos.

Ao contrário do Uruguai, o Brasil rejeita a condenação e recusa o cumprimento das decisões legais da Corte Interamericana, usando o argumento da controversa Lei da Anistia de 1979, concedida pelo próprio regime militar para beneficiar os agentes de seu aparato repressivo, e a conivente chancela do Supremo Tribunal Federal, que revalidou a auto-anistia da ditadura em 2010.

Na quarta-feira (21) da semana passada, o presidente uruguaio José Mujica reconheceu formalmente a responsabilidade do Estado e pediu desculpas públicas à família, numa solenidade em que inaugurou uma placa na sede do antigo Serviço de Informação de Defesa (SID), responsável pelos crimes da ditadura, que vigorou entre 1973 e 1985.

Mal comparando, é como se a presidente Dilma Rousseff, como Mujica também uma ex-guerrilheira e vítima de torturas no regime militar, inaugurasse uma placa parecida na sede do DOI-CODI da rua Tutoia, em São Paulo, o maior centro da repressão militar do país nos anos de chumbo do Governo Médici.

É possível imaginar, assim, a pequenez institucional do gigantesco Brasil diante da grandeza política do pequeno Uruguai.

A simples ameaça de uma Comissão da Verdade no Brasil, o último país no mundo a adotar a medida, provocou tensão na área militar. Os clubes militares das três armas publicaram um manifesto em seus sites, antes do Carnaval, e os ataques à futura comissão viraram cinza na quarta-feira em que as cuícas silenciaram, diante da dura voz de comando da presidente Dilma.

Inconformados, militares da reserva se reaglutinaram em torno de um novo manifesto, ainda mais ameaçador, atacando a autoridade da presidente e de seu ministro da Defesa, Celso Amorim. A ultima contagem dos rebelados informava uma lista de adesões com 126 oficiais-generais da reserva (entre generais, almirantes e brigadeiros), 786 coronéis e 202 tenentes-coronéis.

A reação empolgada da direita militar, saudosista do golpe, provocou uma reação contrária nas ruas. Na mesma quinta-feira em que o Clube Militar realizará sua acintosa reunião festiva, contrariando ordem expressa da presidente Dilma Rousseff, um ato de apoio à Comissão da Verdade será realizado na tradicional Cinelândia, no centro do Rio, bem próximo ao clube dos nostálgicos de 1964.

Os manifestantes, bem humorados, prometem comparecer vestidos de pijama, como os militares da reserva que tentam, agora, voltar à linha de frente da cena política defendendo o regime de força que sustentaram por duas décadas. Na terça-feira, em várias capitais, grupos de estudantes fizeram manifestações pontuais indicando o local de endereço de vários militares e policiais, apontados como torturadores do regime e até hoje impunes.

A exacerbação do debate em torno de quem defende ou critica a Comissão da Verdade pode ser um elemento positivo para tirar a questão dos gabinetes ainda tímidos do poder e ganhar o calor das ruas e da mobilização popular. É a única maneira de tratar, com o devido respeito, uma questão que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal ainda temem colocar em pauta.

O encontro latinoamericano de Porto Alegre mostra que esta não é uma questão exclusivamente doméstica do Brasil, mas uma demanda internacional para quem reverencia a justiça, a memória e a história.

A verdade, ao contrário da mentira, não se fantasia com pijamas.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Vladimir Safatle: Claramente a favor do aborto

Há algum tempo, a política brasileira tem sido periodicamente chantageada pela questão do aborto. Tal chantagem demonstra a força de certos grupos religiosos na determinação do ordenamento jurídico brasileiro, o que evidencia como a separação entre Igreja e Estado está longe de ser uma realidade efetiva entre nós. Uma das expressões mais claras dessa força encontra-se no fato de mesmo os defensores do aborto não terem coragem de dizer isso com todas as letras.
Sempre somos obrigados a ouvir afirmações envergonhadas do tipo: “Eu, pessoalmente, sou contra, afinal, como alguém pode ser a favor do aborto? Mas esta é uma questão de saúde pública, devemos analisá-la de maneira desapaixonada…”
Talvez tenha chegado o momento de dizermos: somos sim absolutamente a favor do aborto. Há aqui uma razão fundamental: não há Estado que tenha o direito de legislar sobre o uso que uma mulher deve fazer de seu próprio corpo. É estranho ver algumas peculiaridades brasileiras. Por exemplo, o Brasil deve ser um dos poucos países onde os autoproclamados liberais e defensores da liberdade do indivíduo acham normal que o Estado se arrogue o direito de intervir em questões vinculadas à maneira como uma mulher dispõe de seu próprio corpo.
Há duas décadas, a artista norte-americana Barbara Kruger concebera um cartaz onde se via um rosto feminino e a frase: “Seu corpo é um campo de batalha”. Não poderia haver frase mais justa a respeito da maneira com que o poder na contemporaneidade se mostra em sua verdadeira natureza quando aparece como modo de administração dos corpos e de regulação da vida. Esta é a função mais elementar do poder: fazer com que sua presença seja percebida sempre que o indivíduo olhar o próprio corpo.
Nesse sentido, não deixa de ser irônico notar como alguns setores do cristianismo, como o catolicismo e algumas seitas pentecostais, parecem muito mais preocupados com o corpo de seus fiéis que com sua alma. Daí a maneira como transformaram, a despeito de outros segmentos do cristianismo, problemas como o aborto, a sexualidade e o casamento homossexual em verdadeiros objetos de cruzadas. Talvez seria interessante lembrar: mesmo entre os cristão tais ideias são controversas. Os anglicanos não veem o aborto como um pecado e mesmo entre os luteranos, embora se digam contrários, ninguém pensaria em excomungar uma fiel por ela ter decido fazer um aborto.
É claro que se pode sempre contra-argumentar dizendo que problemas como o aborto não podem ser vistos exclusivamente como uma questão ligada à autonomia a que tenho direito quando uso meu corpo. Pois haveria outra vida a ser reconhecida enquanto tal. Esse ponto está entre os mais inacreditáveis obscurantismos.
Uma vida em potencial não pode, em hipótese alguma, ser equiparada juridicamente a uma vida em ato. Um embrião do tamanho de um grão de feijão, sem autonomia alguma, parasita das funções vitais do corpo que o hospeda e sem a menor atividade cerebral não pode ser equiparado a um indivíduo dotado de autonomia das suas funções vitais e atividade cerebral. Não estamos diante do mesmo fenômeno.
A maneira com que certos grupos políticos e religiosos se utilizam do conceito de “vida” para unificar os dois fenômenos (dizendo que estamos diante da mesma “vida humana”) é apenas uma armadilha ideológica. A vida humana não é um conceito biológico, mas um conceito político no qual encontramos a sedimentação de valores e normas que nossa vida social compreende como fundamentais. Se dizemos que alguém desprovido de atividade cerebral está clinicamente morto, mesmo se ele conservar grande parte de suas funções vitais ainda em atividade graças a aparelhos médicos, é porque autonomia e autocontrole são valores fundamentais para nossa concepção de vida humana.
Assim, quando certos setores querem transformar o debate sobre o aborto em uma luta entre os defensores incondicionais da vida e os adeptos de alguma obscura cultura da morte, vemos a mais primária tentativa de transformar a vida em um conceito ideológico. Isso se admitirmos que será necessariamente ideológico um discurso que quer nos fazer acreditar que “as coisas falam por si mesmas”, que nossa definição de vida é algo assentado nas leis cristalinas da natureza, que ela não é uma construção baseada em valores sociais reificados.
Levando isso em conta, temos de saudar o fato de alguns arautos do conservadorismo pretenderem colocar tal questão na pauta do debate político brasileiro e esperar que existam algumas pessoas dispostas a compreender a importância do que está em jogo. Desativar as molas do poder passa pela capacidade de colocá-lo a uma distância segura de nossos corpos.

por Vladimir Safatle, em CartaCapital

Marco Aurélio Weissheimer: Essas lésbicas são terríveis!

Fica difícil saber o que está incomodando mais o conservadorismo católico e seus porta-vozes: se a decisão pela retirada dos crucifixos das salas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ou o fato dela ter resultado de uma iniciativa da Liga Brasileira das Lésbicas e de outras entidades de defesa dos direitos de homossexuais.
por Marco Aurélio Weissheimer, em Carta Maior

É notável a quantidade de falácias e preconceitos que vêm sendo esgrimidos em público contra a decisão de retirar os crucifixos das salas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Olhando para alguns dos artigos publicados recentemente, especialmente no jornal Zero Hora, fica difícil saber o que está incomodando mais o conservadorismo católico gaúcho e seus porta-vozes mais ou menos envergonhados: se a decisão pela retirada dos crucifixos ou o fato dela ter resultado de uma iniciativa da Liga Brasileira das Lésbicas e de outras entidades de defesa dos direitos de homossexuais.
O ex-senador Paulo Brossard não escondeu seu, digamos, desconforto. Em artigo intitulado Tempos Apolípticos (ZH – 12/03/2012), Brossard critica a decisão “atendendo postulação de ONG representante de opção sexual minoritária”. No artigo, isso é dito logo após o ex-senador revelar que a filha, Magda, advertiu-o de que “estamos a viver tempos do Apocalipse sem nos darmos conta”.
A única associação feita no artigo ao Apocalipse é com a iniciativa desta “opção sexual minoritária”. No final, Brossard “confessa” surpresa com “a circunstância de ter sido uma ONG de lésbicas que tenha obtido a escarninha medida em causa” e pergunta se a mesma entidade vai propor “a demolição do Cristo que domina os céus do Rio de Janeiro”.
Como jurista, Brossard deveria saber que o princípio da separação entre Estado e Igreja não implica, absolutamente, “a demolição do Cristo que domina os céus do Rio de Janeiro”. Aqui, o preconceito e a falácia andam de mãos dadas (como aliás, costuma acontecer). O que mais essas lésbicas vão querer agora? Demolir o Cristo Redentor? Acabar com o Natal?
A mesma dobradinha entre falácia e preconceito é exibida no artigo O crucificado, do jornalista Flávio Tavares (ZH – 18/03/2012), que também questiona a motivação das lésbicas e mesmo a legitimidade de sua organização, advertindo para perigos futuros. Tavares sugere que pode ser tudo ressentimento: “Desejarão as lésbicas repetir a intolerância de que foram vítimas?” – escreve, questionando se a liga que as representa não “é mero papel timbrado, como tantas no Brasil?” E adverte para os riscos de acabarem com o Natal e os feriados religiosos.

“Dizer que somos um Estado laico que não admite símbolos religiosos é falso e inadmissível. A ser assim, teríamos de terminar com o Natal e os feriados religiosos que pululam pelo calendário”.

Ao contrário de Brossard, o jornalista ainda poderia merecer o desconto de seu evidente desconhecimento a respeito do teor do princípio de separação entre Estado e Igreja, que não proíbe o uso de símbolos religiosos ou a prática de manifestações religiosas pelas pessoas.
Ao contrário do que o jornalista e o jurista dizem, a proibição de símbolos religiosos em repartições públicas não é uma medida intolerante que desrespeita a liberdade de culto. É exatamente o contrário. No caso brasileiro, como a Igreja católica não é a religião oficial do Estado (como nenhuma outra o é, aliás), como existem outras religiões no país, e como vale aqui o princípio da liberdade de culto, o Estado e suas instituições, como o Judiciário, deve se manter equidistante das preferências religiosas particulares de seus cidadãos e cidadãs.
O Estado laico ou secular foi inventado, entre outras coisas, para garantir e proteger a liberdade religiosa de cada cidadão, inclusive a liberdade de não ter religião. A ideia é evitar que alguma religião em particular exerça controle ou interfira em questões políticas.
Todos os doutos juristas que vêm se manifestando a respeito do tema sabem disso, obviamente, ou deveriam saber, ao menos. A invenção do Estado laico foi regada com muito sangue e injustiça. Muito sangue, aliás, derramado pela própria Igreja Católica, que torturou e queimou milhares de pessoas na fogueira. Se há juristas interessados em ostentar em suas salas um símbolo de injustiça, poderiam, por exemplo, colocar na parede um retrato de Giordano Bruno, submetido a um “julgamento ultrajante”, brutalmente torturado e mutilado antes de ser queimado na fogueira.
A religião do Estado republicano é a Constituição. É para isso, entre outras coisas, que foi criada essa coisa chamada República. Nem sempre foi assim. Chegou-se a isso após muito sangue, injustiça e intolerância. A República é tolerante e generosa com a diferença. Ela não exige, por exemplo, que os templos religiosos coloquem uma Constituição na parede.
Mas tem gente com medo do iminente apocalipse que se aproxima. Esses dias terríveis onde as lésbicas – essa “opção sexual minoritária”, como diz Brossard – têm o poder de influir no que ocorre no interior dos tribunais. Como bom católico que é, Brossard foi pedir ajuda ao guardião da fé Dom Dadeus Grings, um ferrenho crítico dos direitos dos homossexuais e um revisionista do Holocausto. O diálogo pode ter sido mais ou menos assim: “Antigamente não se falava em homossexual”, reclamou, saudoso, Dom Dadeus a Brossard. “Minha filha Magda disse que é o Apocalipse”, respondeu o ex-ministro do STF…Pausa para um sinal da cruz.
Essas lésbicas são terríveis. Só falta elas pedirem agora o fim da isenção de impostos para as igrejas. É o fim dos tempos…

Marco Aurélio Weissheimer é editor-chefe da Carta Maior