quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A democracia ante o abismo

Artigo de Boaventura de Sousa Santos.



No contexto de crise em Portugal, o combate contra o fascismo social de que se fala neste texto exige um novo entendimento entre as forças democráticas. A situação não é a mesma que justificou as frentes antifascistas na Europa dos anos 1930, que permitiram alianças no seio de um vasto espectro político, incluindo comunistas e democratas cristãos, mas tem com esta algumas semelhanças perturbadoras.

Esperar sem esperança é a pior maldição que pode cair sobre um povo. A esperança não se inventa, constrói-se com alternativas à situação presente, a partir de diagnósticos que habilitem os agentes sociais e políticos a ser convincentes no seu inconformismo e realistas nas alternativas que propõem.

Se o desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social e certas privatizações (a da água) ocorrerem, estaremos a entrar numa sociedade politicamente democrática, mas socialmente fascista, na medida em que as classes sociais mais vulneráveis verão as suas expectativas de vida dependerem da benevolência e, portanto, do direito de veto de grupos sociais minoritários, mas poderosos.

O fascismo que emerge não é político, é social e coexiste com uma democracia de baixíssima intensidade. A direita que está no poder não é homogênea, mas nela domina a facção para quem a democracia, longe de ser um valor inestimável, é um custo econômico e o fascismo social é um estado normal.

A construção de alternativas assenta em duas distinções: entre a direita da democracia-como-custo e a direita da democracia-como-valor; e entre esta última e as esquerdas (no espectro político atual, não há uma esquerda para quem a democracia seja um custo). As alternativas democráticas hão de surgir desta última distinção.

Os democratas portugueses, de esquerda e de direita, terão de ter presente tanto o que os une como o que os divide. O que os une é a ideia de que a democracia não se sustenta sem as condições que a tornem credível ante a maioria da população. Tal credibilidade assenta na representatividade efetiva de quem representa, no desempenho de quem governa, no mínimo de ética política e de equidade para que o cidadão não o seja apenas quando vota, mas, também, quando trabalha, quando adoece, quando vai à escola, quando se diverte e cultiva, quando envelhece.

Esse menor denominador comum é hoje mais importante do que nunca, mas, ao contrário do que pode parecer, as divergências que a partir dele existem são igualmente mais importantes do que nunca. São elas que vão dominar a vida política nas próximas décadas.

Primeiro, para a esquerda, a democracia representativa de raiz liberal é hoje incapaz de garantir, por si, as condições da sua sustentabilidade. O poder econômico e financeiro está de tal modo concentrado e globalizado, que o seu músculo consegue sequestrar com facilidade os representantes e os governantes (por que há dinheiro para resgatar bancos e não há dinheiro para resgatar famílias?).

Daí a necessidade de complementar a democracia representativa com a democracia participativa (orçamentos participativos, conselhos de cidadãos).

Segundo, crescimento só é desenvolvimento quando for ecologicamente sustentável e quando contribuir para democratizar as relações sociais em todos os domínios da vida coletiva (na empresa, na rua, na escola, no campo, na família, no acesso ao direito). Democracia é todo o processo de transformação de relações de poder desigual em relações da autoridade partilhada. O socialismo é a democracia sem fim.

Terceiro, só o Estado do Bem-Estar Social forte torna possível a sociedade do bem-estar forte (pais reformados com pensões cortadas deixam de poder ajudar os filhos desempregados, tal como filhos desempregados deixam de poder ajudar os pais idosos ou doentes). A filantropia e a caridade são politicamente reacionárias quando, em vez de complementar os direitos sociais, se substituem a eles.

Quarto, a diversidade cultural, sexual, racial e religiosa deve ser celebrada e não apenas tolerada.
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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Venício A. de Lima: Depois de Leveson, a União Europeia

Publicado em 29 de janeiro de 2013 na edição nº 731 do Observatório da Imprensa.

Sob o ensurdecedor silêncio da grande mídia brasileira, foi divulgado em Bruxelas, na terça-feira (22/1), o relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia”, comissionado pela vice-presidente da União Europeia, Neelie Kroes, encarregada da Agenda Digital [ver aqui a íntegra do relatório, acesso em 23/1/2013].

Preparado por um grupo de alto nível (HLG) presidido pela ex-presidente da Letônia, Vaira Vike-Freiberga, e do qual faziam parte Herta Däubler-Gmelin, ex-ministra da Justiça alemã; Luís Miguel Poiares Pessoa Maduro, ex-advogado geral na Corte de Justiça Europeia; e Ben Hammersley, jornalista especializado em tecnologia, o relatório faz trinta recomendações sobre a regulamentação da mídia como resultado de um trabalho de 16 meses que começou em outubro de 2011. As recomendações serão agora debatidas no âmbito da Comissão Europeia.

O relatório
O relatório, por óbvio, deve ser lido na íntegra. Ele começa com um sumário das principais conclusões e recomendações e, na parte substantiva, está dividido em cinco capítulos que apresentam e discutem as bases conceituais e jurídicas que justificam as diferentes recomendações: (1) por que a liberdade da mídia e o pluralismo importam; (2) o papel da União Europeia; (3) o mutante ambiente da mídia; (4) a proteção da liberdade do jornalista; e, (5) o pluralismo na mídia.

Há ainda um anexo de 12 páginas que lista as autoridades ouvidas, as contribuições escritas recebidas e os documentos consultados. A boa notícia é que quase todo esse material está disponível online.

Para aqueles a favor da regulamentação democrática da mídia – da mesma forma que já havia acontecido com o relatório Leveson – é alentador verificar como antigas propostas sistematicamente taxadas pela grande mídia e seus aliados da direita conservadora de autoritárias, promotoras da censura e inimigas da liberdade de expressão, são apresentadas e defendidas por experts internacionais, comissionados pela União Europeia.

Fundamento de todo o relatório são os conceitos de liberdade de mídia e pluralismo. Está lá:

“O conceito de liberdade de mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão, mas não é idêntico a ela [grifo meu]. A última está entronizada nos valores e direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm o direito à liberdade de expressão. Este direito inclui a liberdade de ter opiniões, de transmitir (impart) e receber informações e ideias sem interferência da autoridade pública e independente de fronteiras’ (...).
“Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da propriedade. Ele inclui muitos aspectos, desde, por exemplo, regras relativas a controle de conteúdo no licenciamento de sistemas de radiodifusão, o estabelecimento de liberdade editorial, a independência e o status de serviço público de radiodifusores, a situação profissional de jornalistas, a relação entre a mídia e os atores políticos etc. Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder [formador de opiniões] dominante.”

Encontram-se no relatório propostas como: (1) a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias; (2) o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial ou, alternativamente, por um centro independente ligado à academia, e a publicação regular de relatórios que seriam encaminhados ao Parlamento para eventuais medidas que assegurem a liberdade e o pluralismo; (3) a total neutralidade de rede na internet; (4) a provisão de fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa que seja inviável comercialmente, mas essencial ao pluralismo; (5) a existência de mecanismos que garantam a identificação dos responsáveis por calúnias e a garantia da resposta e da retratação de acusações indevidas.

Pelo histórico de feroz resistência que encontra entre nós, vale o registro uma proposta específica.

Após considerações sobre o reiterado fracasso de agências autorreguladoras, o relatório propõe:

“Todos os países da União Europeia deveriam ter conselhos de mídia independentes, cujos membros tenham origem política e cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses organismos teriam competência para investigar reclamações (...), mas também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade, declarações de conflito de interesse etc. Os conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como a imposição de multas, determinar a publicação de justificativas [apologies] em veículos impressos ou eletrônicos, e cassação do status jornalístico.”

E no Brasil?
A publicação de mais um estudo oficial sobre regulamentação da mídia, desta vez pela União Europeia, menos de dois meses depois do relatório Leveson na Inglaterra, revela que o tema é pauta obrigatória nas sociedades democráticas e não apenas em vizinhos latino-americanos como a Argentina, o Uruguai e o Equador, mas, sobretudo, na Europa.

No Brasil, como se sabe, “faz-se de conta” que não é bem assim e o tema permanece “esquecido” pelo governo, além de demonizado publicamente pela grande mídia como ameaça à liberdade de expressão.

Quem se beneficia com essa situação? Até quando seguiremos na contramão da história?

***
[Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros]

Ministério Público denuncia jornalista por texto ficcional

Publicado em 28 de janeiro de 2013 no jornal Brasil de Fato.

O Ministério Público de Sergipe denunciou criminalmente o jornalista José Cristian Góes, no último dia 23, por causa de um texto ficcional sobre coronelismo. O desembargador do Tribunal de Justiça do Estado, Edson Ulisses, é autor da ação e acusa Góes de ter ofendido a sua honra. Segundo a ação, o jornalista chamou o desembargador de “jagunço” e a sua mulher, irmã do governador Marcelo Déda (PT), de “feia”. A crônica, entretanto, sequer cita o nome e a função do desembargador.
O jornalista José Cristian Góes - Foto: Reprodução
A passagem “chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã” é causadora da polêmica (Leia aqui, na íntegra, o texto Eu, o coronel em mim). Góes propôs escrever um novo texto esclarecendo que jamais havia feito referência a pessoas concretas ou ao desembargador, mas Edson Ulisses rejeitou a proposta. O desembargador também negou a possibilidade de diálogo e acordo para que o processo não fosse adiante.
Diante do quadro, o MP propôs ao jornalista que aceitasse pagar três salários mínimos ou cumprir três meses de prestação de serviços à comunidade. A transação penal, uma espécie de confissão do crime, foi recusada pelo jornalista. “Em hipótese alguma aceito que cometi crime quando escrevi um texto ficcional que fala de um coronel irreal. Não aceito porque jamais citei, nem direta e nem indiretamente, o senhor Edson Ulisses. A prova é o texto”, disse. Diante disso, o MP denunciou criminalmente Góes.
A audiência foi acompanhada na parte externa por movimentos sociais, sindicais, religiosos e partidários, que reivindicavam o respeito à liberdade de expressão e o direito de comunicação. Outra audiência deve ocorrer no mês de março.
Entidades nacionais e internacionais de direitos humanos estão preparando uma série de manifestações para a data. Elas também escreveram uma nota em defesa do profissional (Leia abaixo).

Liberdade de Expressão: direito fundamental para o exercício da cidadania

Nota de solidariedade ao jornalista Cristian Góes

As entidades sindicais, movimentos sociais, organizações populares e partidos políticos abaixo-assinados vêm a público manifestar solidariedade ao jornalista Cristian Góes, que está sendo, injustamente, alvo de dois processos judiciais (um criminal e um cível) movidos pelo Desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe, Edson Ulisses de Melo.

A motivação do Desembargador Edson Ulisses foi um artigo de caráter ficcional escrito por Cristian Góes, em maio deste ano, em seu blog no Portal Infonet. Mesmo o artigo não fazendo qualquer referência a nomes, datas, lugares ou fatos, o Desembargador entendeu que Cristian Góes, de algum modo, o atacava e, por isso, decidiu processar o jornalista.

Mesmo sem ser citado em qualquer linha do artigo, o Desembargador Edson Ulisses alega injúria, difamação e pede a prisão de até quatro anos do jornalista, abertura de inquérito policial e pagamento de indenização em valores a ser fixado pelo juiz, além do valor de R$ 25 mil para as custas do processo.

O artigo escrito pelo jornalista nada mais é que o exercício criativo de descrever uma situação que poderia ter acontecido em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo, que, em vários aspectos, ainda tem marcas do coronelismo e do autoritarismo político e econômico.

Por isso, para nós, não restam dúvidas que a ação judicial impetrada pelo Desembargador se configura como um ataque à liberdade de expressão, direito fundamental para o exercício da cidadania.

Direito este que é previsto no artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, no último dia 10 de dezembro, completou 64 anos. Diz o artigo XIX: “todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer interferência e de procurar, receber e divulgar informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.

Direito garantido também na Constituição Federal brasileira, de 1988. Diz o artigo 5º, IX, da nossa Carta Magna: “É livre a expressão da atividade intelectual, artísticas, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Dessa forma, entendemos que a ação judicial contra o jornalista Cristian Góes não fere somente a sua liberdade, mas a de todos aqueles que defendem a verdadeira liberdade de expressão e o direito humano à comunicação. Com ações como esta, o Desembargador Edson Ulisses processa não só o jornalista Cristian Góes, mas nos processa também.

Por isso, por meio desta nota e cotidianamente em nossas ações, continuaremos na luta diária pela garantia do direito à liberdade de expressão para todos e todas, e não somente para alguns.

19 de dezembro de 2012

Entidades que assinam a nota:
  1. ABRAÇO – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária em Sergipe
  2. Associação Desportiva, Cultural e Ambiental do Robalo - ADCAR
  3. ANEL – Assembleia Nacional dos Estudantes Livre
  4. Associação dos Geógrafos do Brasil
  5. Cáritas Diocesana de Propriá
  6. CCLF – Centro de Cultura Luiz Freire
  7. Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil em Sergipe – CTB/SE
  8. Central Sindical e Popular – CSP/CONLUTAS
  9. Central Única dos Trabalhadores em Sergipe – CUT/SE
  10. Coletivo Azedume
  11. Diretório Acadêmico de Comunicação Social da Universidade Federal de Sergipe
  12. ENECOS – Executiva Nacional dos/as Estudantes de Comunicação Social
  13. Fórum em Defesa da Grande Aracaju
  14. Grupo de Pesquisa em Marketing da Universidade Federal de Sergipe
  15. Instituto Braços
  16. Instituto de Formação Humana e Educação Popular
  17. Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
  18. MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos em Sergipe
  19. Movimento Não Pago
  20. Núcleo Piratininga de Comunicação
  21. PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul
  22. Partido Comunista Brasileiro (PCB)
  23. Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – Diretório Municipal de Aracaju
  24. Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) – Diretório Municipal de Aracaju e Diretório Estadual de Sergipe
  25. Renajorp - Rede Nacional de Jornalistas Populares
  26. Sindicato dos Agentes de Medidas Socioeducativas de Sergipe
  27. Sindicato dos Bancários de Sergipe
  28. SINDICAGESE – Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Cimento, Cal e Gesso do Estado de Sergipe
  29. SINDIFISCO – Sindicato do Fisco do Estado de Sergipe
  30. SINDIJOR – Sindicato dos Jornalistas do Estado de Sergipe
  31. SINDIJUS – Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado de Sergipe
  32. SINDIPETRO AL/SE – Sindicato Unificado dos Trabalhadores do Ramo do Petróleo, Químico, Petroquímico, Plástico e Fertilizante de Alagoas e Sergipe
  33. SINTESE – Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Sergipe
  34. SINTUFS - Sindicato dos Trabalhadores Técnico Administrativo em Educação da Universidade Federal de Sergipe
  35. STERTS – Sindicato dos Radialistas do Estado de Sergipe
  36. União da Juventude Comunista - UJC
  37. ULEPICC-BR – União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, Capítulo Brasil.
Pessoas que aderem à nota:
  1. Adriana Sangalli, jornalista (Rio de Janeiro)
  2. Alexandrina Luz Conceição, professora do Núcleo de Pós-Graduação de Geografia da Universidade Federal de Sergipe
  3. Álvaro Brito, jornalista, vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro
  4. Alejandro Zambrana, fotógrafo (Sergipe)
  5. Allan de Carvalho, jornalista (Sergipe)
  6. Arlene Carvalho, enfermeira (Rio de Janeiro)
  7. Bia Barbosa, jornalista (São Paulo)
  8. Caio Teixeira, jornalista (Santa Catarina)
  9. Carlos Pronzato, cineasta e escritor (Salvador)
  10. Carole Ferreira da Cruz, jornalista (Sergipe)
  11. Caroline Rejane Sousa Santos, jornalista, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de Sergipe
  12. Cecília Figueiredo, jornalista (São Paulo)
  13. César Bolaño, professor da Universidade Federal de Sergipe
  14. Cláudio Nunes, jornalista (Sergipe)
  15. Clécia Carla Silva Santos, jornalista, mestranda em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe
  16. Débora Melo, jornalista (Sergipe)
  17. Demétrio Varjão, economista (Sergipe)
  18. Diego Barboza, jornalista (Sergipe)
  19. Edivânia Freire, jornalista (Sergipe)
  20. Elaine Tavares, jornalista (Santa Catarina)
  21. Elma Santos, radialista (Sergipe)
  22. Ethiene Fonseca, publicitário e jornalista (Sergipe)
  23. Fernanda de Almeida Santos, estudante de audiovisual da Universidade Federal de Sergipe
  24. Flávia Cunha, professora (Sergipe)
  25. Gabriela Melo, jornalista (Sergipe)
  26. George Washington, jornalista, ex-Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de Sergipe
  27. Hamilton Octavio de Souza, professor da PUC-SP e editor da Revista Caros Amigos
  28. Hellington Chianca Couto - Professor (Rio de Janeiro)
  29. Heitor Cesar Oliveira, historiador e membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro
  30. Heitor Pereira Alves Filho, professor substituto de Economia do Petróleo da Universidade Federal de Sergipe
  31. Iracema Corso, jornalista (Sergipe)
  32. Isabela Raposo, radialista (Sergipe)
  33. Isaías Carlos Nascimento Filho, padre (Sergipe)
  34. Ivan Moraes Filho, jornalista e produtor do programa Pé na Rua (Pernambuco)
  35. Izabel Nascimento, professora (Sergipe)
  36. Janete Cahet, jornalista (Sergipe)
  37. Joanne Mota, jornalista (São Paulo)
  38. Joe Igor, Diretor do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado de Sergipe
  39. Jonas Valente, jornalista, Secretário-Geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal
  40. José Dias Firmos dos Santos - Servidor Público Federal (Sergipe)
  41. José Leidivaldo Oliveira, estudante de Com. Social/Jornalismo-UFS
  42. Juliana Sada, jornalista (São Paulo)
  43. Júlio César Carignano, jornalista (Cascavel, Paraná)
  44. Keka Werneck, jornalista, Secretária-Geral do Sindicato dos Jornalistas do Mato Grosso
  45. Leonor Costa, jornalista, 1ª tesoureira do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal
  46. Lilian França, professora da Universidade Federal de Sergipe
  47. Lúcia Rodrigues, jornalista (São Paulo)
  48. Luige de Oliveira, sociólogo (Sergipe)
  49. Luis Alberto Barbosa Pinto, historiador, músico e tesoureiro do PSOL Sergipe
  50. Luiz Antonio dos Santos, jornalista (Rio de Janeiro)
  51. Luiz Gustavo de Mesquita Soares, jornalista, membro do grupo Sindicato é Pra Lutar (Santos/SP)
  52. Márcio Rocha, radialista (Sergipe)
  53. Márcio Rogers Melo de Almeida, economista (Sergipe)
  54. Marcos Urupá, jornalista, membro do Intervozes e do LutaFENAJ! (Distrito Federal)
  55. Marina Schneider, jornalista (Rio de Janeiro)
  56. Mário Augusto Jakobskind, Presidente da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa
  57. Matheus Ítalo Nascimento, Diretor Executivo e fundador da Agência Prime Propaganda
  58. Matheus Pereira Mattos Felizola - Prof. Dr. Universidade Federal de Sergipe
  59. Natália Alexandre, engenheira eletricista (Bahia)
  60. Paulo Sousa, jornalista, radialista, publicitário
  61. Pedro Carrano, membro da Diretoria do Sindicato dos Jornalistas do Paraná
  62. Pedro Estevam da Rocha Pomar, jornalista (São Paulo)
  63. Pedro Paulo de Lavor Nunes (Sec. de Formação Política da UJC-Sergipe)
  64. Priscila da Silva Góes, professora de História (Sergipe)
  65. Renato Lima Nogueira, jornalista (Sergipe)
  66. Renato Prata, integrante do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD)
  67. Renato Rovai, editor da Revista Fórum e professor da Faculdade Cásper Libero (São Paulo)
  68. Roberto Morales, integrante da Justiça Global
  69. Rogério Alimandro, membro da Executiva do Partido Socialismo e Liberdade Diretório do Rio de Janeiro (PSOL/RJ)
  70. Romério Venâncio, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe
  71. Sílvia Sales, jornalista (Pará)
  72. Sônia Aguiar, jornalista e professora da Universidade Federal de Sergipe
  73. Tarcila Olanda, jornalista (Sergipe)
  74. Valério Paiva, jornalista e membro do Diretório Estadual do PSOL (São Paulo)
  75. Valter Pomar, membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT)
  76. Venício Lima, jornalista e sociólogo (Distrito Federal)
  77. Verlane Aragão, professora da Universidade Federal de Sergipe
  78. Wesley Pereira de Castro, mestrando em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe
  79. Iran Barbosa, vereador de Aracaju pelo PT
Para aderir à nota de solidariedade, basta enviar um e-mail para liberdadedeexpressao.sergipe@gmail.com

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Emiliano José: O comunista baiano que sobreviveu à ditadura

Publicado em 28 de janeiro de 2013 no blog VioMundo.

Marighella e Caetano

por Emiliano José*

A ditadura matou o comunista. Covardemente. Ditadura é sempre sinônimo de covardia. Nunca de coragem. Na noite paulista, o comunista foi assassinado no final de 1969. Matou e pretendeu enterrar o seu nome e o seu significado para sempre. Que ninguém mais se lembrasse dele. Que os brasileiros o esquecessem. Acontece, e a ditadura não podia compreender isso, nunca poderia, que os comunistas guardavam o sonho, como diz Caetano Veloso em seu belo Um comunista, no seu Abraçaço. E o sonho é indestrutível.

O comunista mulato baiano filho de um italiano e de uma preta haussá, que foi aprendendo a ler olhando o mundo desde a Baixa dos Sapateiros, entra em beco sai em beco, de onde subiu as ladeiras do conhecimento, de onde seguiu para o universo do comunismo. Assim nasce um comunista, um mulato baiano que morreu em São Paulo baleado por homens do poder militar nas feições que ganhou em solo americano a dita guerra fria Roma, França e Bahia. Os comunistas guardavam o sonho. Caetano estava no exílio quando mataram o comunista.

Caetano mandou um recado lá do quase inverno londrino: eu é que tinha morrido, ele estava vivo.

Claro que ninguém entendia o seu recado – eram tempos de ditadura. Vida sem utopia não entendo que exista: assim fala um comunista. Caetano sofre ao pensar nele: Era luta romântica era luz e era treva feita de maravilha de tédio e de horror. E ele sabia que o mulato baiano já não obedecia às ordens de interesse que vinham de Moscou. E sabia, sempre soube: os comunistas guardavam o sonho. Porém, a raça humana segue trágica sempre indecodificável tédio horror maravilha.

O ano do Abraçaço foi também o ano de O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, notável biografia sobre o comunista. Sobre ele, escrevi também um livro: O inimigo número um da ditadura militar. Ano de 2011, apareceu o filme de Isa Grinspum Ferraz, que o retrata com imenso carinho. Há o livro organizado por Jorge Nóvoa, há tantos outros estudos. O sonho do comunista não fora em vão. Sua memória, resgatada, pouco a pouco, e agora de modo cada vez mais acelerado.

Penso no Abraçaço, na ousadia de Caetano. Penso no que foram os comunistas, difíceis de serem decodificados nos dias de hoje. Tinham algo de solidamente aventureiros, que me desculpem a expressão. Não tinham lugar de pouso, eram errantes, pensavam na humanidade inteira sem deixar de amar sua terra, dedicavam-se à luta de maneira integral. Queriam o socialismo e o comunismo. Tinham convicções.

Caminharam primeiro pelo glorioso PCB, nada assemelhado com o PPS de hoje. Depois, repartiram-se em muitas siglas, e houve os que, como o comunista do Abraçaço, que se lançaram à luta armada contra a ditadura, acreditando ser aquela a única forma de luta possível diante de tanta violência e arbítrio. A repressão usou o martelo-pilão para matar a formiga, como diria o general Adyr Fiúza de Castro. Massacraram pessoas, torturaram, desapareceram com tantos brasileiros e brasileiras, o que agora pode ser mais bem esclarecido com a Comissão Nacional da Verdade.

Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar, o mulato baiano, o guerrilheiro que incendiou o mundo, o pai de Carlinhos Marighella, o comunista companheiro de Clara Charf, avô de Maria e de Pedro, estudante que impressionou o Central e a Politécnica com suas provas em versos, que se esbaldava nos carnavais baianos em sua juventude, que contagiava o mundo com sua alegria, que ajudou tantos a buscarem o exílio, que resolveu ficar até o fim na luta contra a ditadura, o comunista de Caetano Veloso é parte eterna da memória do povo brasileiro e do povo da Bahia, sua terra.

Se dele, Marighella, lembramos com admiração, se dele podemos aprender tanto em desprendimento, se dele acolhemos os sonhos generosos para com a humanidade, da ditadura, diferentemente, só podemos lembrar da violência e do arbítrio, da tortura, das mortes, dos desaparecimentos, uma longa noite de terror, uma situação que sob nenhuma hipótese queremos ver repetida. A ditadura será para sempre repudiada. Marighella é um herói de nossa gente. Para sempre.

*Artigo publicado originalmente na edição desta segunda-feira, no jornal A Tarde.

A belíssima letra da música Um Comunista de Caetano Veloso

Um mulato baiano,
Muito alto e mulato
Filho de um italiano
E de uma preta hauçá
Foi aprendendo a ler
Olhando mundo à volta
E prestando atenção
No que não estava a vista
Assim nasce um comunista
Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo
Baleado por homens do poder militar
Nas feições que ganhou em solo americano
A dita guerra fria
Roma, França e Bahia
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O mulato baiano, mini e manual
Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas
Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos
Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas
Como são os comunistas?
Não que os seus inimigos
Estivessem lutando
Contra as nações terror
Que o comunismo urdia
Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro
Quase sempre por menos
Quase nunca por mais
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado:
"eu que tinha morrido"
E que ele estava vivo,
Mas ninguém entendia
Vida sem utopia
Não entendo que exista
Assim fala um comunista
Porém, a raça humana
Segue trágica, sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano
Samba o reverencia
Muito embora não creia
Em violência e guerrilha
Tédio, horror e maravilha
Calçadões encardidos
Multidões apodrecem
Há um abismo entre homens
E homens, o horror
Quem e como fará
Com que a terra se acenda?
E desate seus nós
Discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara
O mulato baiano já não obedecia
As ordens de interesse que vinham de Moscou
Era luta romântica
Ela luz e era treva
Venta de maravilha, de tédio e de horror
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas!

domingo, 27 de janeiro de 2013

Promoções atraentes no stf e no stj


A Guerra Civil, lá e cá - Lincoln, de Nabuco a Spielberg

Artigo publicado em 27 de janeiro de 2013 no caderno Ilustrissima do jornal de direita golpista folha de são paulo.

por Luis Felipe de Alencastro, professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne.

RESUMO A reeleição de Obama e os contrastes culturais entre o século 21 e o 19 realçam teor contemporâneo e político de "Lincoln". Para o público brasileiro, o longa de Spielberg suscita reflexões sobre o abolicionismo num tempo em que o Brasil era visto, pelos escravocratas sulistas, como um exemplo a ser seguido nas Américas.

DESDE O INÍCIO das celebrações dos 150 anos da Guerra da Secessão em 2011, a mídia americana registra uma miríade de narrativas sobre o drama mais sangrento de sua história. O jornal "The New York Times", que em 1860 e 1864 apoiou as duas candidaturas de Abraham Lincoln (1809-65), criou um blog intitulado Disunion. Análises de eventos da Guerra Civil são feitas em opinionator.blogs.nytimes.com/category/disunion.

Para não se enredar em batalhas oitocentistas, o diretor Steven Spielberg deixou claro que não era historiador e que seu filme não pretendia retratar fielmente os fatos. Também tentou tomar distância da atualidade. Afirmou que trabalhava no projeto de "Lincoln" havia muitos anos e que o filme não fora lançado no ano passado para não interferir na campanha presidencial.

Pouco importa: a projeção de Lincoln nas telas americanas, europeias, asiáticas e brasileiras foi meticulosamente planejada para coincidir com o espetáculo planetário armado em torno da posse do presidente americano, Barack Obama, no seu segundo mandato.

Logo de saída, a primeira cena do filme sugere que a eleição de Obama concretiza o projeto igualitário idealizado por Lincoln. Na conversa do presidente com dois soldados negros em 1865, um deles diz que o fato de os brancos estarem vendo negros lutar nos regimentos da União abria grandes perspectivas: "Daqui a alguns anos teremos talvez capitães e tenentes negros; daqui a 50 anos, um coronel negro; daqui a 100 anos, o direito a voto...". O tom suspensivo da frase sugere a sequência não vocalizada, mas óbvia: "daqui a 150 anos, um presidente negro".

Com o filme em cartaz, o noticiário fundiu as imagens de Lincoln e Obama. Um florilégio de frases aproximando os dois presidentes pontuou os comentários da mídia americana na semana passada. Tony Kushner, o roteirista do longa-metragem, disse que o discurso de posse de Obama foi "lincolniano". Chris Matthews, da rede de TV MSNBC, abertamente favorável a Obama, preferiu um qualificativo menos usual -"lincolnesco". Um comentarista da CNN classificou a fala de Obama como o "terceiro discurso de posse de Lincoln".

GANCHOS Na realidade, o filme está cheio de ganchos para se engatar na atualidade americana. Alguns ficam firmes, outros quebram ao serem mostrados. Pai de sete filhos, Spielberg vê os adolescentes passarem o dia vidrados num smartphone ou num tablet. Para transportar a relação entre Lincoln e seu filho Tad, que tinha 11 anos em 1865, ao cotidiano das famílias do seculo 21, o diretor bota na mão do garoto, como se fosse um iPad, os negativos de vidro de fotos da Guerra Civil.

Várias cenas mostram Tad mexendo nas fotos do seu "iPad", acentuando a inverossimilhança dos gestos. As salas dos telégrafos de Washington são filmadas como se fossem lan houses de cidade interiorana onde notícias da internet são debatidas pelos usuários. Num plano mais geral, a trama se articula à atualidade política. A politicagem de Lincoln para concretizar o voto da 13ª Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão, espelha-se nos conchavos do atual presidente para a aprovação do "Obamacare" -como é chamada a reforma do sistema de saúde que favorece os pobres e regula as empresas do setor- e de outras reformas sociais.

A busca do entendimento entre os partidos Republicano e Democrata, o vaivém entre a Casa Branca e o Congresso faz a vida política de 1865 ficar parecida com a de 2010 em Washington.

Mas há outros pontos importantes no filme. Como notaram alguns comentaristas, o mérito de "Lincoln" consiste em situar a abolição da escravidão no centro da Guerra Civil. Parece óbvio, mas não é.

Em 2010, o governador da Virgínia, Bob McDonnell, publicou um manifesto celebrando os confederados e sua defesa das liberdades estaduais, sem mesmo mencionar a palavra escravidão.

Mais ainda, o filme mostra que o escravismo era a base da identidade e da economia sulista.

Numa cena, o vice-presidente da Confederação, Alexander Stephens, diz a Lincoln que o fim da escravidão "extingue" a economia do Sul -e completa: "Todas as nossas tradições serão destruídas e nós não nos reconheceremos mais".

Lincoln, que era advogado, acreditava na tese do "slave power", no expansionismo da escravocracia.

Para ele, o escravismo sulista, impulsionado pela decisão da Suprema Corte estabelecendo o primado do direito de propriedade sobre o direito à liberdade (caso Dred Scott versus Sandford, 1857), se espalharia pelos novos Estados do Oeste americano. Daí sua convicção de que era preciso abolir a escravidão definitivamente e prosseguir a guerra até a rendição incondicional dos confederados.

Em editorial de 5 de novembro de 1864, apoiando a reeleição de Lincoln, o "New York Times" diz que o candidato republicano "tem a absoluta confiança da imensa maioria favorável à supressão da escravidão pela força". Caso contrário, aliando-se aos escravocratas antilhanos e sul-americanos, o sistema tomaria conta das Américas. "Do Sul americano para a América do Sul", diz Lincoln para Thaddaeus Stevens, o abolicionista radical, na conversa dos dois na cozinha da Casa Branca.

Na verdade, ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, onde a escravidão era apenas regional, a escravocracia dominava todo o território brasileiro. Assim, o país era citado como exemplo pelos escravocratas americanos.

PROSPERIDADE Um dos mais eficazes propagandistas da Confederação, o economista James DeBow (1820-67), escrevia em 1860: "O Brasil, cuja população de escravos equivale à nossa, é o único país da América do Sul que prosperou". A prosperidade brasileira parecia muito promissora porque já se sabia que estava solucionada a principal ameaça à escravocracia: a posse dos 750 mil africanos introduzidos depois de 1831 e ilegalmente escravizados desde então.

Em 1854, o então ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, institucionalizou a doutrina vitoriosa dos escravocratas: a propriedade dos senhores desses africanos, e de seus descendentes, estava assegurada "por princípios de ordem pública e alta política anistiando esse passado [de ilegalidade] cuja liquidação fora difícil, cujo revolvimento fora uma crise". Em outras palavras, os 750 mil africanos e seus descendentes -que a lei de 1831 declarava indivíduos livres ilegalmente sequestrados por seus alegados proprietários- passavam a ser escravos até morrer.

Em fevereiro de 1909, em Washington, onde era o embaixador brasileiro e representante da América Latina na cerimônia do centenário de nascimento de Lincoln, Joaquim Nabuco compara a abolição nos Estados Unidos e no Brasil. Para começar, reitera a tese do "slave power". Diz que o abolicionismo intransigente de Lincoln também salvou o Brasil. "Ninguém [...] poderia dizer o que teria sido o esforço pela abolição no Brasil se [...] uma nova e poderosa nação houvesse surgido na América [Confederada], tendo por bandeira a manutenção e a expansão da escravidão."

Em seguida, Joaquim Nabuco, renegando seus escritos abolicionistas, endossa o conchavo de seu pai, o ministro Nabuco de Araújo, e faz o elogio do jeito brasileiro de terminar com a escravidão:

"Pudemos vencer a nossa causa [abolicionista] sem ter sido derramada uma só gota de sangue [...] conseguimo-lo num grande abraço de confraternidade nacional, e foram os proprietários de escravos, com a prodigalidade de suas cartas de manumissão, os que impulsionaram a ação das leis libertárias sucessivamente decretadas".

Nabuco reescreve a história do abolicionismo e dissimula a vitória da escravocracia no Brasil. Na conclusão de seu discurso, ele afirma: "Os ideais da geração dos anos 2000 não serão os mesmos dos da geração dos anos 1900". Porém, acrescenta: "A legenda de Lincoln avultará cada vez mais na sucessão dos séculos".

O Lincoln de Steven Spielberg mostra o que a geração dos americanos dos anos 2000 pensa da escravidão americana. Nossos manuais escolares podiam começar a mostrar o que pensam os brasileiros dos anos 2000: houve no Brasil uma guerra civil sem canhões nem baionetas, vencida pelos escravocratas.

O "grande abraço de confraternidade nacional" escravizou ilegalmente, de 1850 a 1888, duas gerações de negros e mulatos livres.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Mino Carta: Um líder no começo - Editorial

Editorial publicado em 24 de janeiro de 2013 na revista Carta Capital.

E vem à tona, de súbito, um fato de 35 anos atrás. Uma entrevista de Luiz Inácio da Silva, mais popular como Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, então com 32 anos. Ali está a essência do pensamento de um operário que se tornaria presidente da República. A lucidez, a clareza, a coerência, a energia.
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Lucidez. “Sou dedo-duro para a oposição, comunista para o governo, subversivo para os patrões”

Volto ao presente. Telefona Cynara Menezes, valente jornalista da sucursal de Brasília. Acaba de inaugurar uma nova seção no seu blog, destinada a divulgar antigas entrevistas. Pergunta se conservo uma de minha autoria, aquela de Lula publicada pela IstoÉ de 1º de fevereiro de 1978. Não, não conservo. Diga-se que nada guardo da minha vida profissional, artigos, colunas, coleções de revistas e jornais que dirigi. Nem sei se tenho em casa algum exemplar dos meus livros.

Entra em cena outro valente, Dilico Covizzi, foi meu companheiro de trabalho em diversas ocasiões, a começar por Veja, na qualidade de peça fundamental do Departamento de Documentação da Editora Abril. Seguiu-me no Jornal da República e na IstoÉ. Pesquisador emérito, sabe à perfeição como e por que um arquivo não há de ser necrotério de documentos e informações. Hoje a exercer a profissão na qual se formou, Direito, ainda me atende quando preciso, e cabe a ele a tarefa de capturar aquela entrevista, capaz de levar um presidente da Fiesp, Mario Amato, a dizer: “Só falta agora o Mino namorar Lula”.

A bem da precisão, contei naquele dia em São Bernardo com a preciosa escolta de Bernardo Lerer, enésimo valente, e desta surtida falo no meu livro de iminente publicação pela Editora Record, O Brasil, desabusado na mistura de memória com ficção. Por isso, a entrevista tem dupla autoria, restou-me escrever a reportagem que a precede, um perfil da personagem, estampada na capa de IstoÉ. Dizia a chamada: “Lula e os Trabalhadores do Brasil”. Foi a primeira capa dedicada a quem, 24 anos depois, alcançaria a Presidência de todos os brasileiros, sem exclusão dos metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.

O mergulho nas páginas de 35 anos atrás me fez bem, tenho todas as razões para me orgulhar daquela edição, daquela reportagem e daquela entrevista. Limito-me a reproduzir trechos desta. Bernardo e eu perguntamos: “Mas onde você está ideologicamente?” O entrevistado responde: “Digo de peito aberto que não tenho compromisso com ninguém e que o Sindicato de São Bernardo e Diadema é uma da poucas coisas independentes que existem nesta terra. Só tenho compromisso com os trabalhadores que me elegeram. No mais a gente é chamado de dedo-duro pela oposição, de comunista pelo governo e de subversivo pelos patrões”.

Insistimos. “E a ideologia, Lula, a ideologia?” E lá veio a resposta: “Para fazer um partido dos trabalhadores é preciso reunir os trabalhadores, discutir com os trabalhadores, fazer um programa que atenda às necessidades dos trabalhadores. Aí pode nascer um partido de baixo para cima”. Estávamos diante de um líder de visões agudas. Afirmava: “Existe, na categoria dos metalúrgicos, um pessoal preparado, que lê jornal e sabe das coisas. Mas a maioria não tem tempo de dar a bênção para os filhos”. E mais: “Eu tenho muito cuidado para movimentar esta classe trabalhadora ainda inconsciente, porque o retrocesso pode ser ainda maior”.

Nem por isso, tirava o time de campo. “Não devemos abandonar a reivindicação, se não conseguirmos o que queremos, vamos voltar à carga em 1979, e não se não conseguirmos em 1979…

Não estou preocupado se o ano é eleitoral, os donos do poder é que em um momento como este estão preocupados. Por isso, acho que é hora de negociar, num nível bem alto (…) Quando eu digo negociar, é porque não existe poder de barganha. (…) No entanto, vejam como são as coisas, o movimento sindical está preocupado com o AI-5. A mim, o que incomoda é um artigo da Consolidação das Leis do Trabalho que não permite a dirigentes sindicais discordarem da política econômica, quem discorda pode ser cassado”.

“Proponho-me – declarava Lula –, não incentivar aos trabalhadores a fazerem greves, mas a prepará-los a entenderem o valor da greve.” Ele já compreendia a diferença entre consumidor e cidadão, e este é aquele que tem, exatamente, a consciência dos seus direitos e dos seus deveres. Pois é, a consciência da cidadania, atributo tão raro até hoje, 35 anos depois, em todos os níveis.

Enfim, o pensamento do futuro presidente, situação inimaginável então. “Em defesa do capital nacional, eu me aliaria a eles como brasileiro (referia-se aos empresários ‘de visão menos poluída’) como se estivesse cumprindo um dever para com meu país. Claro que pretenderia levar as minhas vantagens nesta aliança, mas acima de tudo estaria o interesse nacional.”

Altamiro Borges: Dilma na TV. PSDB sentiu o baque!

Publicado em 24 de janeiro de 2013 no Blog do Miro.
 
http://pigimprensagolpista.blogspot.com.br/
Por Altamiro Borges

O PSDB divulgou hoje à tarde uma nota oficial confessando que sentiu o baque com o pronunciamento de Dilma Rousseff em rede nacional de rádio e tevê na noite de quarta-feira. Os tucanos adoram a "liberdade de expressão" dos "calunistas" da mídia. Eles têm orgasmos com as análises "imparciais" de Miriam Leitão, Merval Pereira, Ricardo Noblat e até com os rosnados dos pitbulls da Veja. Mas ficaram indignados com a presidenta, que anunciou à nação a redução das contas de luz e retrucou os "pessimistas" de plantão. A tal "liberdade de expressão" da direita não contempla sequer a presidenta eleita pela maioria dos brasileiros.
Na nota oficial, o PSDB afirma que "o governo do PT acaba de ultrapassar um limite perigoso para a sobrevivência da jovem democracia brasileira. Na noite desta quarta-feira, o país assistiu à mais agressiva utilização do poder público em favor de uma candidatura e de um partido político: o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff... Durante os oito minutos de divulgação obrigatória por parte das emissoras de rádio e TV brasileiras, a presidente Dilma faltou com a verdade, fez ataques a seus adversários, criticou a imprensa e desqualificou os brasileiros que ousam discordar de seu governo".
 
Na maior caradura, a nota afirma ainda que "o conceito de República foi abandonado. A chefe da Nação, que deveria ser a primeira a reconhecer-se como presidente de todos os brasileiros, agora os divide em dois grupos: o 'nós' e o 'eles'. O dos vencedores e o dos derrotados. Os do contra e os a favor. É como se estivesse fazendo um discurso numa reunião interna do PT, em meio ao agitar das bandeiras e ao som da charanga do partido... No governo do PT, tudo é propaganda, tudo é partidarizado".
 
Os tucanos, que minguam a cada eleição, parecem que esqueceram a postura autoritária que adotaram no triste reinado de FHC. Exército acionado para reprimir os grevistas da Petrobras, ações truculentas contra ocupações de terras ociosas, rolo-compressor no Congresso Nacional, submissão do Judiciário e relação promíscua com os barões da mídia. Quem sempre desqualificou os adversários foram os caciques tucanos, que acusaram os que resistiram à privataria das estatais e à retirada de direitos trabalhistas de "dinossauros". Para usar uma famosa expressão de FHC, os tucanos agora repetem o blablablá dos derrotados.
 
A reação intempestiva e patética do PSDB ao pronunciamento da presidenta confirma porque a direita teme tanto a regulação democrática da mídia. Ela quer manter o monopólio da palavra nas emissoras de rádio e TV, que são concessões públicas. Ela quer garantir a exclusividade de espaço para os seus porta-vozes na radiodifusão, para os seus "calunistas" amestrados. O PSDB sabe que só sobrevive hoje graças à "turma do contra" da mídia venal. Quando Dilma utilizou um direito constitucional, a direita sentiu o baque!

Enquanto mundo discute casamento gay, Brasil aprova lei da moral

Publicado em 23 de janeiro de 2013 no blog do Marcelo Semer.

Nossa jornada não estará completa enquanto nossos irmãos e irmãs gays não forem tratados como todas as outras pessoas perante a lei –pois, se somos verdadeiramente criados iguais, então com certeza o amor que dedicamos uns aos outros também deve ser igual”.

Em um discurso repleto de forte simbolismo, o presidente Barack Obama inaugurou nessa semana sua segunda gestão na Casa Branca, inserindo o casamento homoafetivo como um dos grandes débitos dos direitos civis.

Sofrendo riscos políticos, com uma popularidade que já não está alta e uma forte campanha contrária de grupos religiosos, o presidente François Hollande também impulsionou a questão apresentando projeto para o reconhecimento do casamento na França. E José “Pepe” Mujica, no Uruguai, incluiu o tema em um pacote anticonservador mais amplo, marca de sua passagem libertária pelo poder.

E o Brasil, por onde anda?

Na mesma semana da conclamação de Obama pela igualdade na orientação sexual, o outrora liberal Rio de Janeiro aprovava uma lei de “resgate de valores morais”, proposta pela deputada Myriam Rios, porta-bandeira da bancada religiosa.

Uma importante estratégia de combate à homofobia foi abandonada antes mesmo de começar nas escolas públicas em razão de críticas conservadoras e acabou virando tema de campanha eleitoral. Por incrível que possa parecer, deputados federais discutem, em pleno século 21, um projeto de lei que autoriza a “cura de gays”.

Onde foi que nos perdemos?

Como podemos estar trafegando tão abertamente na contramão?

Esse moralismo não é nocivo porque pretende simplesmente instaurar ou resgatar valores –mas porque quer fazer com que o Estado escolha alguns deles para impor ao conjunto de seus cidadãos.

Quando Myriam Rios fala em “valorizar a família”, como em geral ocorre com parlamentares da fé, vitamina o preconceito contra tudo o que entende por “anormal” ou o que desvia do seu “padrão cristão”. Não à toa, como outros integrantes da “bancada da moral” confunde expressa e maliciosamente pedofilia com homossexualidade.

Na democracia, o pluralismo impede que o Estado imponha um determinado comportamento moral ou que puna quem quer seja por praticar outros que não afetem terceiros.

O “moral”, dentro do estado democrático, é construir a igualdade.

A dignidade humana, que na Constituição é um valor fundante, iluminando direitos e obrigações, relações públicas ou privadas, impõe a consideração de todos como seres humanos com iguais direitos à sua realização pessoal –inclusive na busca da felicidade.

Mas a igualdade exige ainda uma firme luta contra o preconceito, que vitima cada vez mais homossexuais, em bárbaras e covardes agressões à luz do dia. Também isso faz parte da luta contra a desigualdade –país rico é país sem preconceito, deve dizer a propaganda oficial.

Governo e Congresso patinam no tema do casamento gay, que só foi reintroduzido pelo Judiciário, curiosamente o mais tradicionalista dos poderes.

É certo que não é pequena a distância entre o discurso e a prática de Obama –o aumento de deportações de imigrantes é uma entre tantas de suas contradições. O presidente norte-americano também tem uma situação partidária mais simples do que a brasileira –afinal, por lá, os republicanos não fazem parte da base de sustentação do governo.

Mas ainda assim, pela força do simbolismo, as portas que ele pode abrir e os comportamentos violentos que pode frear, já estava na hora de a presidenta Dilma fazer coro com seus parceiros democratas e socialistas nessa luta pela ampliação dos direitos civis.

A história certamente lhe dará razão.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Noam Chomsky: A maior ameaça à paz mundial

Os Estados Unidos realizaram em dezembro um teste nuclear em Nevada. O país não aceitou abrir a atividade aos inspetores internacionais, o que têm exigido do Irã – que, aliás, protestou, assim como fizeram o prefeito de Hiroshima e alguns grupos pacifistas japoneses. O acontecimento voltou a chamar atenção para a disputa entre Israel e Irã, mas sem pôr em pauta o que realmente é importante: a criação de uma zona livre de armas nucleares no Oriente Médio.

Noam Chomsky, em La Jornada, via Carta Maior

Há alguns meses, ao informar sobre o debate final da campanha presidencial nos Estados Unidos, o The Wall Street Journal observou que “o único país mais mencionado (que Israel) foi o Irã, o qual a maioria das nações de Oriente Médio vê como a principal ameaça à segurança da região”.

Os dois candidatos estiveram de acordo em que um Irã nuclear é a maior ameaça à região, se não ao mundo, como Romney sustentou explicitamente, reiterando uma opinião convencional.

Sobre Israel, os candidatos rivalizaram em declarar sua devoção, mas nem assim os as autoridades israelenses se deram por satisfeitas. Esperavam “uma linguagem mais ‘agressiva’ de Romney”, segundo os repórteres. Não foi suficiente que Romney exigisse que não se permitisse que o Irã “alcance um ponto de capacidade nuclear”.

Também os árabes estavam insatisfeitos, porque os temores árabes sobre o Irã se “debateram sob a ótica da segurança israelense, não da região”, e as preocupações dos árabes não foram contempladas: uma vez mais, o tratamento convencional.

O artigo do Journal, como incontáveis outros sobre o Irã, deixa sem resposta perguntas essenciais, entre elas: Quem exatamente vê o Irã como a ameaça mais grave à segurança? O que os árabes (e a maior parte do mundo) acham que se pode fazer diante dessa ameaça, existindo ou não?

A primeira pergunta é fácil de responder. A ameaça iraniana é uma obsessão totalmente do Ocidente, compartilhada por ditadores árabes, embora não pelas populações árabes.

Como mostraram numerosas pesquisas, mesmo que os cidadãos dos países árabes em geral não simpatizem com o Irã, não o consideram uma ameaça muito grave. Na verdade, percebem que a ameaça são Israel e Estados Unidos, e vários, muitas vezes maiorias consideráveis, veem nas armas nucleares iranianas um contrapeso para essas ameaças.

Em altas esferas dos Estados Unidos, alguns estão de acordo com a percepção das populações árabes, entre eles o general Lee Butler, ex-chefe do Comando Estratégico. Em 1998 ele disse: “É extremamente perigoso que, no caldeirão de animosidades que chamamos Oriente Médio”, uma nação, Israel, deva contar com um poderoso arsenal de armas nucleares, “que inspira outras nações a tê-lo também”.

Ainda mais perigosa é a estratégia de contenção nuclear da qual Butler foi o principal formulador por muitos anos. Tal estratégia, escreveu em 2002, é “uma fórmula para uma catástrofe sem remédio” e convidou os Estados Unidos e outras potências atômicas a aceitar os compromissos contraídos dentro do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e fazer esforços de “boa fé” para eliminar a praga das armas atômicas.

As nações têm a obrigação legal de levar a sério esses esforços, decretou a Corte Mundial em 1996: “Existe a obrigação de avançar de boa fé e levar a termo as negociações orientadas ao desarmamento nuclear em todos seus aspectos, conforme um controle internacional estrito e efetivo”. Em 2002, o governo de George W. Bush declarou que os Estados Unidos não estão comprometidos com essa obrigação.

Uma grande maioria do mundo parece compartilhar a opinião dos árabes sobre a ameaça iraniana. O Movimento de Países Não Alinhados (MNA) apoiou com vigor o direito do Irã de enriquecer urânio; sua declaração mais recente aconteceu na cúpula de Teerã, em agosto passado.

A Índia, membro mais populoso do MNA, encontrou formas de evadir às onerosas sanções financeiras dos Estados Unidos ao Irã. Executam planos para vincular o porto iraniano de Chabahar, recondicionado com assistência indiana, com a Ásia Central, através do Afeganistão. Também se informa que as relações comerciais se incrementam. Se não fosse pelas fortes pressões de Washington, é provável que estes vínculos naturais tivessem uma melhoria substancial.

A China, que tem estatuto de observadora no MNA, faz o mesmo, em boa medida. Expande seus projetos de desenvolvimento para o Ocidente, entre eles iniciativas para reconstituir a antiga Rota da Seda para a Europa. Uma linha ferroviária de alta velocidade conecta a China com o Cazaquistão e além. É provável que chegue ao Turcomenistão, com seus ricos recursos energéticos, e que se conecte com o Irã e se estenda até a Turquia e a Europa.

A China também tomou o controle do importante porto de Gwadar, no Paquistão, que lhe permite obter petróleo do Oriente Médio evitando os estreitos de Ormuz e Malaca, saturados de tráfico e controlados pelos Estados Unidos. A imprensa paquistanesa informa que “as importações de petróleo cru do Irã, dos estados árabes do Golfo e da África poderiam ser transportadas por terra até o noroeste da China através deste porto”.

Em sua reunião de agosto, em Teerã, o MNA reiterou sua velha proposta de mitigar ou pôr fim à ameaça das armas nucleares no Oriente Médio, estabelecendo uma zona livre de armas de destruição em massa. Os passos nessa direção são, sem dúvida, a maneira mais direta e menos onerosa de superar essas ameaças, o que é apoiado por quase o mundo inteiro.

Uma excelente oportunidade de aplicar essas medidas se apresentou recentemente, quando se planejou uma conferência internacional sobre o tema em Helsinki.

Foi realizada uma conferência, mas não a que estava planejada. Só organizações não governamentais participaram da reunião alternativa, organizada pela União pela Paz, da Finlândia. A conferência internacional planejada foi cancelada por Washington em novembro, pouco depois que o Irã concordou em comparecer.

A razão oficial do governo Obama foi “a turbulência política na região e a desafiante postura do Irã sobre a não proliferação”, segundo a agência Associated Press, junto a uma falta de consenso sobre como enfocar a conferência. Essa razão é a aprovada referência ao fato de que a única potência nuclear da região, Israel, se negou a comparecer, alegando que a solicitação para fazê-lo era “coerção”.

Aparentemente, o governo de Obama mantém sua postura anterior de que “as condições não são apropriadas, a menos que todos os membros da região participem”. Os Estados Unidos não permitirão medidas para submeter as instalações nucleares de Israel a inspeção internacional.

Também não revelará informação sobre “a natureza e alcance das instalações e atividades nucleares israelenses”.

A agência de notícias do Kuwait informou imediatamente que “o grupo árabe de Estados e os estados membros do MNA concordaram em continuar negociando uma conferência para o estabelecimento de uma zona livre de armas nucleares no Oriente Médio, assim como de outras armas de destruição em massa”.

Recentemente, a Assembleia Geral da ONU aprovou, por 174 votos a seis, uma resolução na qual convida Israel a aderir ao TNP. Pelo não, votou o contingente acostumado: Israel, Estados Unidos, Canadá, as Ilhas Marshall, Micronésia e Palau.

Dias depois, em dezembro, os Estados Unidos realizaram um teste nuclear, impedindo mais uma vez o acesso de inspetores internacionais ao local do teste, em Nevada. O Irã protestou, assim como o prefeito de Hiroshima e alguns grupos pacifistas japoneses.

Claro que, para estabelecer uma zona livre de armas atômicas, se requer a cooperação das potências nucleares: no Oriente Médio, isso incluiria os Estados Unidos e Israel, que se negam a cooperar. O mesmo acontece em outros lugares. As zonas da África e do Pacífico aguardam a aplicação do tratado porque os Estados Unidos insistem em manter e melhorar as bases de armas nucleares nas ilhas que controla.

Enquanto se levava a cabo a conferência de ONGs em Helsinki, em Nova York se realizava um jantar com o patrocínio do Instituto sobre Políticas sobre o Oriente Próximo, de Washington, ramificação do conselho israelense.

Segundo uma matéria entusiasta sobre essa “cerimônia” na imprensa israelense, Dennis Ross, Elliott Abrams e outros “ex-conselheiros de alto nível de Obama e Bush” asseguraram aos presentes que “o presidente atacará (o Irã) se a diplomacia não funcionar”: um presente de festas de fim de ano muito atrativo.

É difícil que os estadunidenses estejam cientes de como a diplomacia voltou a falhar, por uma simples razão: virtualmente não se informa nada nos Estados Unidos sobre o destino da forma mais óbvia de lidar com “a mais grave ameaça”: estabelecer uma zona livre de armas nucleares no Oriente Médio.

Noam Chomsky é professor emérito de linguística e filosofia no Instituto Tecnológico de Massachusetts, em Cambridge. O novo livro de Noam Chomsky, Power systems: conversations om global democratic uprisings and the new challenges to US empire (Sistemas de poder: conversas sobre as rebeliões democráticas globais e os novos desafios ao império estadunidense) será publicado em janeiro.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

EZLN: Respuesta del subcomandante Marcos a la Cruzada Nacional contra el Hambre

Respuesta del subcomandante Marcos a la Cruzada Nacional contra el Hambre, que Enrique Peña Nieto echó a andar en el municipio de Las Margaritas, Chiapas.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Janis 70 anos

 
 



 
 
Janis Lyn Joplin
(Port Arthur, 19 de Janeiro de 1943 — Los Angeles, 4 de Outubro de 1970)

Trinta anos sem o gênio Mané Garrincha

Publicado em 20 de janeiro de 2013 na coluna Deixa falar: o megafone do esporte no portal de esquerda Carta Maior.

por Raul Milliet Filho

No dia 20 de janeiro de 1983, há exatos 30 anos, morria Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, no Rio de Janeiro. Por causa disso, “Deixa Falar: o megafone do esporte” sai hoje em edição extraordinária para lembrar Mané e uma de suas criações: o Olé, através de um texto clássico de João Saldanha, à época (1958) técnico do lendário time do Botafogo.



"OLÉ" NASCEU NO MÉXICO

(Texto extraído do livro Os Subterrâneos do Futebol, de João Saldanha, lançado em 1963 pela editora Tempo Brasileiro)

O Estádio Universitário ficou à cunha. Cem mil pessoas comprimidas para assistir ao jogo. É muito alegre um jogo no México. É o país em que a torcida mais se parece com a do Rio de Janeiro. Barulhenta, participa de todos os lances da partida. Vários grupos de "mariaches" comparecem. Estes grupos, que formam o que há de mais típico da música mexicana, são constituídos de um ou dois "pistões" e clarins, dois ou três violões, harpa (parecida com a das guaranias), violinos e marimbas. As marimbas são completamente de madeira, mas não vão ao campo de futebol, sendo substituídas por instrumentos pequenos. O ponto alto dos "mariaches" é a turma do pistão, do clarim e o coro, naturalmente. No campo de futebol, os grupos amadores de "mariaches" que comparecem ficam mais ativos em dois momentos distintos: ou quando o jogo está muito bom e eles se entusiasmam, ou, inversamente, quando o jogo está chato e eles "atacam" músicas em tom gozador. No jogo em que vencemos ao Toluca, que estava no segundo caso, os "mariaches" salvaram o espetáculo.

O time do River era, realmente, uma máquina. Futebol bonito e um entendimento que só um time que joga junto há três anos pode ter. Modestamente, jogamos trancados. A prudência mandava que isto fosse feito. De fato, se "abríssemos", tomaríamos um baile.


Foi um jogo de rara beleza. E não foi por acaso. De um lado estavam Rossi, Labruña, Vairo, Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro, estavam Didi, Nilton Santos, Garrincha etc. Jogo duro e jogo limpo. Não se tratava de camaradagem adquirida em quase um mês no mesmo hotel, mas sim da presença de grandes craques no gramado. A torcida exultava e os "mariaches" atacavam entusiasmados.

Estava muito difícil fazer gol. Poucas vezes vi um jogo disputado com tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à parte. Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores. Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que surgiu a gíria do "Olé", tão comumente utilizada posteriormente em nossos campos. Não porque o Botafogo tivesse dado "Olé" no River. Não. Foi um "Olé" pessoal. De Garrincha em Vairo.


Nunca assisti a coisa igual. Só a torcida mexicana com seu traquejo de touradas poderia, de forma tão sincronizada e perfeita, dar um "Olé" daquele tamanho. Toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamava: "Ôôôôô"! O som do "olé" mexicano é diferente do nosso. O deles é o típico das touradas. Começa com um ô prolongado, em tom bem grave, parecendo um vento forte, em crescendo, e termina com a sílaba "lé" dita de forma rápida. Aqui é ao contrário: acentua-se mais o final "lé": "Olééé!" – sem separar, com nitidez, as sílabas em tom aberto.

Verdadeira festa. Num dos momentos em que Vairo estava parado em frente a Garrincha, um dos clarins dos "mariaches" atacou aquele trecho da Carmem que é tocado na abertura das touradas. Quase veio abaixo o Estádio Universitário.

Numa jogada de Garrincha, Quarentinha completou com o gol vazio e fez nosso gol. O River reagiu e também fez o dele. Didi ainda fez outro, de fora da área, numa jogada que viera de um córner, mas o juiz anulou porque Paulo Valentim estava junto à baliza. Embora a bola tivesse entrado do outro lado, o árbitro considerou a posição de Paulinho ilegal. De fato, Paulinho estava "off-side". Havia um bolo de jogadores na área, mas o árbitro estava bem ali. E Paulinho poderia estar distraindo a atenção de Carrizo.

O jogo terminou empatado. Vairo não foi até o fim. Minella tirou-o do campo, bem perto de nós no banco vizinho. Vairo saiu rindo e exclamando: "No hay nada que hacer. Imposible" – e dirigindo-se ao suplente que entrava, gozou:

– Buena suerte muchacho. Pero antes, te aconsejo que escribas algo a tu mamá.

O jogo terminou empatado e uma multidão invadiu o campo. O "Jarrito de Oro", que só seria entregue ao "melhor do campo" no dia seguinte, depois de uma votação no café Tupinambá, foi entregue ali mesmo a Garrincha. Os torcedores agarraram-no e deram uma volta olímpica carregando Mané nos ombros. Sob ensurdecedora ovação da torcida. No dia seguinte, os jornais acharam que tínhamos vencido o jogo, considerando o tal gol como válido. Mas só dedicaram a isto poucas linhas. O resto das reportagens e crônicas foi sobre Garrincha.
As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecimento e deram grande destaque ao "Olé". As notícias repercutiram bastante no Rio e a torcida carioca consagrou o "Olé". Foi assim que surgiu este tipo de gozação popular, tão discutido, mas que representa um sentimento da multidão.

Já tentaram acabar com o "Olé". Os árbitros de futebol, com sua inequívoca vocação para levar vaias, discutiram o assunto em congresso e resolveram adotar sanções. Mas como aplicá-las? Expulsando a torcida do estádio? Verificando o ridículo a que estavam expostos, deixam cada dia mais o assunto de lado. É melhor assim. É mais fácil derrubar um governo do que acabar com o "Olé".

Não poderia ter havido maior justiça a um jogador que a que foi feita pelos mexicanos a Mané Garrincha. Garrincha é o próprio "Olé".

Dentro e fora de campo, jamais vi alguém tão desconcertante, tão driblador. É impossível adivinhar-se o lado por onde Mané vai "sair" da enrascada. Foi a coisa mais justa do mundo que Garrincha tivesse sido o inspirador do "Olé".


Clique neste link e veja algumas jogadas de Garrincha. Reparem na jogada de Garrincha contra a Espanha na Copa de 1962, driblando vários adversários, colocando a bola na cabeça de Amarildo para fazer 2x1 Brasil. Uma vitória que classificou o Brasil.

Paulo Moreira Leite: Um bode no Congresso

Publicado em 19 de janeiro de 2013 na coluna de Paulo Moreira Leite na revista Isto É.

As denúncias contra o deputado Henrique Alves podem ser as mais importantes deste século, mas ocorrem numa hora curiosa.
Com 41 anos de Congresso, Henrique Alves parece enquadrar-se na categoria de parlamentar típico, que habita a fronteira daquela zona cinzenta das finanças políticas, onde nem sempre é possível separar o legal do ilegal – mas é sempre possível dizer que é tudo imoral e quase tudo é suspeito.

Nada se provou contra o parlamentar até agora, embora ele já tenha sido denunciado há mais de uma década. Em 2002, sua ex-mulher denunciou que Henrique Alves possuía um cartão de crédito milionário, que não poderia ser quitado com o salário de deputado. Henrique Alves fora escolhido para ser companheiro de José Serra na campanha presidencial daquele ano, mas perdeu a vaga.

A mais nova denuncia envolve uma possível empresa fantasma de um assessor, e tem até um bode na sede, no Rio Grande do Norte, chamado Galeguinho. Também se informa que Henrique Alves recebeu uma verba de campanha de R$ 10.000 do dono de um posto de gasolina onde gastou R$ 50.000 para abastecer o carro oficial.

Tudo isso deve ser apurado e investigado.

Mas é sempre bom perguntar se não há um bode político nesta discussão. As denuncias contra Henrique Alves não caíram do céu. Têm a impressão digital de seus adversários internos no PMDB, que gostariam de ocupar sua vaga.

Convém advertir: são flores que exalam o mesmo perfume. Freqüentam os mesmos ambientes e os mesmos coquetéis.

Candidato a presidente da Câmara de Deputados, até agora sem adversário real, Henrique Alves tomou uma posição política importante, a respeito de um fato decisivo da legislatura que se inicia em fevereiro.

Procurado para dizer o que pensava da ideia da Câmara decretar a perda de mandato dos quatro parlamentares condenados pelo mensalão, sem passar pelo ritual definido pelo artigo 55 da Constituição, Henrique Alves disse que em sua opinião o Congresso não deveria abrir mão de suas prerrogativas.

Ou seja: os deputados até poderiam perder o mandato, mas a Câmara não deveria deixar de cumprir aquilo que define a Lei Maior. Isto quer dizer: levar o debate para plenário e submeter a decisão a voto direto e secreto. A perda do mandato, diz a Constituição, será definida por maioria absoluta. E quem tem a palavra final são os parlamentares.

Pode até ser um "vexame," como diz o professor Oscar Vilhena, da FGV, mas a Constituição definiu assim.

Não conheço a biografia de Henrique Alves para fazer um balanço de suas atitudes políticas. Tenho certeza, no entanto, que poucas vezes ele teve a oportunidade de manifestar-se sobre um assunto tão relevante.

Do ponto de vista da separação de poderes e da preservação das garantias democráticas, o deputado com o assessor do bode Galeguinho fez a coisa certa.

E por isso eu acho justo perguntar por que só agora, quando ele completa 40 anos de Congresso, é que todos se lembram de investigar o que se sabe e o que se assopra a seu respeito.

Deve ser tudo coincidência, vamos combinar. O Galeguinho deve estar rindo de tudo, concorda?

sábado, 19 de janeiro de 2013

Moralidades anacrônicas

Incrível que esta entrevista tenha sido publicada no jornal da direita elitista, golpista e moralista O Estado de São Paulo em 19 de janeiro de 2013.

Apesar da entrevistar tratar prioritariamente da igreja católica, todos os ramos do cristianismo podem ser incluídos como o atraso e o prenuncio de um retorno à idade média no século XXI e os mais atrasados no Brasil são os grupos evangélicos neo-pentecostais que quando falamos em mundo podemos consolidar este atraso junto aos muçulamanos fundamentalistas e outros grupos religiosos portadores do atraso.

JULIANA SAYURI, O Estado de S. Paulo


Enquanto o papa Bento XVI recitava ‘Angelus’, militantes do Femen bradavam versos não tão angelicais - Reuters/Giampiero Sposito
Reuters/Giampiero Sposito
 
Enquanto o papa Bento XVI recitava ‘Angelus’, militantes do Femen bradavam versos não tão angelicais
Paris parou. Desta vez não foram intelectuais e críticos franceses hasteando incendiárias bandeiras liberais na Champs-Elysées. Foram milhares de manifestantes religiosos - católicos, evangélicos e muçulmanos, entre outros - em marcha contra o casamento gay, que o presidente François Hollande pretende legalizar. “Foi uma reação de diferentes forças da direita francesa - e nada melhor que escolher Paris para conferir visibilidade ao movimento político”, comenta o sociólogo Ricardo Mariano nesta entrevista.

No paralelo, no mesmo domingo, militantes feministas fizeram topless mirando a janelinha de Bento XVI, em Roma. Contra o Angelus que recitava o papa, as ativistas do Femen mostraram corpos ilustrados com provocativos slogans como In Gay We Trust - e foram rapidamente cobertas por policiais e fiéis. “Foi uma resposta, uma provocação. Ali, na sede da Santa Sé, a manifestação não passaria em branco”, diz Mariano.

Para o sociólogo, a hierarquia eclesiástica católica tem como ideal de modelo familiar o núcleo formado por um casal heterossexual, unido pelo casamento monogâmico, e sob a autoridade masculina. “Mas tal modelo está em rápido declínio. Crescem as uniões estáveis, as famílias monoparentais, os casais sem filhos”, afirma.

Onze países reconhecem o casamento gay, como Argentina, Bélgica, Canadá, Holanda, Islândia, Noruega e Suécia. No Brasil, desde as rodadas de discussões no Supremo Tribunal Federal em 2011, é reconhecida a união civil homoafetiva. Nos últimos tempos, Estados Unidos e França parecem caminhar nessa linha, para legalizar o casamento gay. “Aos poucos, os políticos estão perdendo o medo de se insurgirem contra moralidades anacrônicas”, continua Mariano, um estudioso das relações espinhosas entre política e religião, e autor de Laicidades em Debate (EdiPUCRS) e de Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil (Loyola). De Porto Alegre, ele falou ao Aliás.

No domingo passado, uma manifestação massiva contra o casamento gay tomou as ruas de Paris. Isso pode ser interpretado como uma ofensiva da Igreja Católica?
Foi uma reação que mobilizou diferentes forças da direita francesa - e nada melhor do que escolher Paris para conferir visibilidade a qualquer movimento político reivindicativo. Entre essas forças, a Igreja Católica, zelosa defensora da discriminação estatal das minorias sexuais. Historicamente, as direitas se posicionam contra a universalização e a equalização de direitos. A hierarquia eclesiástica católica e a maioria dos grupos protestantes têm como modelo familiar ideal o núcleo formado por um casal heterossexual, unido pelo casamento monogâmico (que se pretende indissolúvel, pois sagrado), com ou sem filhos, sob a autoridade masculina. Porém, tal modelo está em rápido declínio. Crescem as uniões estáveis, as famílias monoparentais, os casais sem filhos. E as famílias resultantes das mais diversas recomposições de indivíduos divorciados e seus filhos de outras uniões. Além disso, o casamento religioso e civil não é mais o principal vínculo das relações conjugais. Atualmente, o que une os casais são os laços afetivos, independentemente de qualquer rito religioso ou documento. E a área do direito da família, cada vez mais secularizada, tem isso em alta conta. Mas lideranças católicas e evangélicas tendem a considerar legítimos - quer dizer, “normais” e “naturais” - o casamento heterossexual e a família nuclear, que seriam inspirados por Deus. Salvo algumas exceções (como as igrejas evangélicas compostas por gays), as lideranças consideram as práticas homossexuais antibíblicas, imorais, patológicas, pecaminosas e promíscuas. Inferiorizam, estigmatizam e discriminam as minorias sexuais. Assim, estabelecem hierarquias de gênero.

Por quê?
Esses grupos religiosos acreditam que as práticas sexuais e os arranjos familiares dos gays atentam contra normas e valores cristãos, culturalmente dominantes. Normas e valores que consideram universais, os únicos corretos e desejados por Deus. Recorrem a fantasias delirantes de que, no caso da legalização das adoções por casais gays, a sexualidade dos pais poderá influenciar a sexualidade das crianças, prejudicando-as pela ausência de uma referência de gêneros. Como se não bastasse, acusam, absurdamente, os homossexuais de serem responsáveis pelo aumento dos casos de pedofilia. A partir de preconceitos infundados, leituras bíblicas fundamentalistas, teologias de matiz integrista e moralidades religiosas extemporâneas, defendem a discriminação de pessoas por suas orientações sexuais, propondo publicamente que o Estado as trate de modo desigual. Portanto, opõem-se à isonomia de direitos. Essa é justamente a reivindicação dos movimentos LGBT: igualdade de direitos. Só querem assegurar o direito jurídico de casar e de adotar crianças, como qualquer outra família.

Que impacto isso causa na sociedade?
Esses grupos religiosos legitimam a homofobia. No Brasil, o Projeto de Lei 122/2006 (que propõe a criminalização da homofobia) provocou diversas reações contrárias e homofóbicas de grupos cristãos, principalmente evangélicos. Entre outros absurdos, dizem que os homossexuais querem estabelecer uma “ditadura gay” no País. Nas suas igrejas, tentam “libertar” as supostas vítimas do demônio da homossexualidade, tentam curá-las por intervenção divina e práticas psicoterápicas proibidas, pois anticientíficas e antiéticas, segundo o Conselho Federal de Psicologia. Frente às mudanças culturais, aos novos e pluralistas arranjos familiares e ao surgimento do movimento gay nas últimas décadas, os grupos cristãos conservadores reagiram fortemente, mobilizando-se para fazer lobbies e pressionar partidos, parlamentares e governantes, para impor obstáculos morais e políticos a quaisquer mudanças jurídicas a respeito do casamento, da família, da união civil.

Le Monde cita uma ofensiva midiática do Vaticano, tanto que o papa estreou no Twitter. Bento XVI está tentando se modernizar?
Decididamente, os dois últimos pontificados não se preocuparam nem agiram para empreender nenhuma espécie de novo aggiornamento, muito menos no plano da moralidade sexual e da família. Ao contrário. Eles parecem voltados a um passado menos pluralista e menos democrático. Desconectado com seu tempo e com suas urgências, João Paulo II se manteve firme, vetando o uso da camisinha em pleno auge da epidemia da aids. A moral sexual defendida pela Igreja Católica tem se mantido reacionária, marcada por posições tradicionalistas, em crescente descompasso com o avanço dos direitos humanos nessas matérias. Quanto aos jovens, a defesa de abstinência sexual para solteiros, por exemplo, está a anos-luz de constituir uma estratégia razoável para conquistá-los. Proposta de um anacronismo infindo, ainda mais diante da crescente emancipação individual e individualizante em relação a moralidades e instituições religiosas tradicionais.

O sociólogo argentino Juan Marcio Vaggione diz que a política é uma dimensão constitutiva da Igreja Católica. Bento XVI tem sido acentuadamente político?

Não me parece que o pontificado de Bento XVI seja mais político e politizado que o de seus antecessores. A questão é que a Igreja Católica, assim como outras instituições religiosas tradicionais, está cada vez mais pressionada pela secularização desenfreada de diversas áreas da vida, com o avanço do pluralismo cultural, os desafios éticos impostos pelas descobertas científicas, os outros movimentos religiosos, as rápidas transformações comportamentais e culturais, etc. Por certo, a rápida descatolicização da Europa e da América Latina vem pesando na forte reação defensiva e conservadora da Igreja contra quaisquer mudanças legislativas na família e na moralidade sexual. Na modernidade, um dos principais redutos das instituições religiosas tem sido justamente a esfera da moralidade focada na vida privada. Mas convenhamos que, na prática, as instituições religiosas perderam há tempos o poder que outrora tinham sobre a conduta dos indivíduos. Basta observar que a Igreja Católica não tem mais poder sobre as mudanças demográficas na América Latina para questões como o uso de métodos contraceptivos, os novos padrões de relacionamento afetivo e namoro, os hábitos sexuais. Tais mudanças comportamentais agora passam a ser legitimadas em diferentes países. Pipocam aprovações da união civil de homossexuais. Aos poucos, os políticos estão perdendo o medo de se insurgirem contra moralidades sexuais anacrônicas. Em plena campanha presidencial norte-americana, Barack Obama se manifestou favorável ao casamento gay. Agora, na laica república francesa, é a vez de François Hollande bancar a ideia.

Enquanto milhares desfilam em Paris contra o casamento gay, a Catedral Nacional passará a realizar essas uniões em Washington...

Atualmente, a Igreja Católica é internamente bastante diversificada - apesar de correntes teológicas conservadoras serem hegemônicas no momento. Por séculos, a Igreja Católica lutou contra as liberdades de expressão e de pensamento, contra o princípio da tolerância, contra a modernidade. Mas mudou muito, sobretudo a partir do Vaticano II, ao sucumbir e se adaptar a valores, princípios e instituições da democracia liberal. Nas últimas décadas, seus pendores conservadores falaram alto, ficando obcecados pela defesa da família e da vida. A garantia do Estado laico depende da vigilância e da mobilização política constante por parte dos defensores da laicidade.

A religião deve ocupar o espaço público?
A democracia moderna é agonística por natureza. Em sociedades pluralistas, espera-se que ocorram divergências, disputas, conflitos entre diferentes atores sociais que sustentam distintos interesses, ideologias, moralidades e valores. As instituições e autoridades públicas devem resguardar a paz, a ordem social, o cumprimento da lei e o próprio direito fundamental de todos para manifestar livremente suas ideias, suas preferências e seus valores no espaço público. Se se quer assegurar a democracia, não se pode negar o direito dos grupos religiosos de vir a público para defender seus interesses, protestar contra atos do governo, politizar suas demandas. É constitutivo da democracia. Além disso, os grupos religiosos não são intrinsecamente conservadores na política, nem tradicionalistas na moral. Por exemplo, as seitas protestantes desempenharam destacado papel na formação da democracia norte-americana, enquanto as igrejas protestantes dos negros foram fundamentais na luta pelos direitos civis. Por sua vez, a Igreja Católica também passou por mudanças teológicas e políticas consideráveis. A partir da década de 1960, após o aggiornamento promovido pelo Concílio Vaticano II, que reconheceu o direito à liberdade religiosa e deu relativa abertura ao princípio da laicidade, a ala católica progressista avançou celeremente na América Latina. Disseminou a Teologia da Libertação, as comunidades eclesiais de base, as pastorais sociais. Quatro anos depois do golpe militar no Brasil, a Igreja Católica rompeu com a ditadura e se tornou um baluarte da defesa das liberdades civis, dos direitos humanos e da redemocratização. A guinada ideológica da Igreja Católica demonstra empiricamente que não se pode definir qualquer religião, incluindo aí as distintas vertentes islâmicas, como intrinsecamente conservadoras ou incompatíveis com a democracia e os princípios basilares da modernidade.

Encíclicas de João Paulo II e Bento XVI criticam a modernidade. Numa mirada de longo prazo, o sr. diria que o Vaticano vem mesmo na linha da politização?
Na primeira carta de seu pontificado, no dia 25 de dezembro de 2005, Bento XVI afirma que “a justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política”. Após reconhecer a distinção entre Estado e Igreja, o papa admite que a política não pode ser encargo imediato da Igreja. Para o pontífice, “a Igreja não pode nem deve tomar nas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível”. Mas, a seu ver, não pode ficar à margem na luta pela justiça. Essa observação preconiza a atuação da Igreja na esfera pública lato sensu, embora não necessariamente na política partidária. Porém, para definir a justiça, o Estado precisa recorrer à razão. O inconveniente disso é que a razão, a seu ver, tende a padecer de uma “cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram”. Por isso, para o pontífice, cabe à fé católica o papel de descortinar novos horizontes para além do âmbito da razão e purificá-la de sua cegueira. No intento de colaborar para a construção de uma sociedade justa, atribui à Igreja um papel de mediadora da política. Assim, apesar de salvaguardar, parcialmente, a moderna autonomia do Estado e da política em relação aos poderes religiosos, Bento XVI defende um papel decisivo da Igreja na confirmação da ética. Com sua “laicidade sã”, o papa procura mobilizar e municiar doutrinariamente suas bases para lutar a fim de manter a Igreja influente na esfera pública. A perspectiva de Bento XVI repousa numa crítica tipicamente conservadora aos preceitos racionais e seculares das esferas jurídica e política e à razão científica, numa visão religiosa que deprecia a modernidade.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Mino Carta: A herança da casa-grande

Editorial  publicado em 18 de janeiro de 2013 na revista Carta Capital.

Não quero que os ricos chorem, dizia o líder do PSD sueco, Olof Palme, quero é que os pobres riam. Palme, social-democrata autêntico, foi primeiro-ministro e crente denodado da igualdade social. Sublinho autêntico para que não seja confundido com nossos social-democratas de fancaria.
Palme, assassinado por um demente, é um herói de outro tempo, quando a religião do deus mercado ainda não vingara, dois impérios dividiam a terra e as esquerdas da Europa Ocidental contribuíam de forma determinante para o progresso dos seus povos. Não existiam oligarquias financeiras para mandar mais que os governos nacionais e anátemas eram lançados contra o chamado “capitalismo selvagem”.

Atenção! Embora pareça, esta cena não é dos dias de hoje
Atenção! Embora pareça, esta cena não é dos dias de hoje

É do conhecimento até do mundo mineral que a crise dos dias de hoje foi deflagrada pela aplicação dos mandamentos neoliberais, que ela não poupa o Brasil e que os remédios aviados até agora pelos governos do ex-Primeiro Mundo mostram-se incapazes de combater a origem do mal. Quando não cuidam, abertamente, de proteger quem provocou o desastre, e mesmo de fortalecer-lhe o poder.

Vivemos o tempo dos super-ricos e dos superpobres. A diferença entre uns e outros tornou-se voragem infinda, abismo sem fundo. O Brasil também conta com seus super-ricos, arrolados nas listas anualmente propostas ao espanto global. Esta privilegiadíssima tigrada dispõe de fortunas calculáveis em bilhões e não é fácil entender como se deu esta frenética, desenfreada multiplicação de dinheiro, enquanto bilhões de seres humanos morrem de fome.

Sem pretender parafrasear Olof Palme, eu diria que os super-ricos me incomodam muito menos do que os aspirantes a super-ricos. Medram no Brasil, em diversos patamares da escada social, burgueses e burguesotes de diversos calibres. Classes A e B1, digamos, sem excluir de pronto os anseios recônditos de inúmeros remediados. Pergunto: que ricões, ricos, riquinhos e sonhadores de riqueza são estes?

Algo é certo: não se trata dos burgueses que fizeram a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.

Do meu modesto ponto de vista, anoto que classe média tem um significado no Brasil e outro em diversos cantos do globo. Claro, existem parâmetros econômicos para medições precisas, embora pareça dilatada demais a separação entre limites mínimo e máximo fixados no Brasil para figurar na categoria.

Coube à burguesia acabar com as monarquias por direito divino e selar de certa forma, e de vez, o fim da antiguidade medieval. A classe média europeia é uma larga maioria que incorporou e alargou os horizontes burgueses, em termos de cultura no sentido mais amplo. Nada disso se aplica ao Brasil, onde a casa-grande e a senzala, ou se quiserem, os sobrados e os mocambos, continuam de pé, ao sabor de uma aparente contemporaneidade que não lhes abranda os efeitos.

A ostentação do luxo é típica de uma herança resistente na ausência de saber e verdadeiro refinamento, dramaticamente compensados por atitudes toscas e mesmo vulgares. Há exceções, mas não passam disto. Não é por acaso que o Brasil conta com um exército de mais de 7 milhões de empregados domésticos. Recorde mundial estabelecido quando há décadas este gênero de serviçal é cada vez mais raro nos países democraticamente evoluídos. E nem se fale de manobristas, passeadores de cachorros, babás. E assim por diante.

E que dizer da segurança privada, dos soturnos senhores de terno escuro e gravata, escalados para a proteção de patrões em trajes esporte fino, eventualmente de bermudas? Há, mundo afora, senhores graúdos que não dispensam guarda-costas, capangas, jagunços. Não é simples distinguir, porém, quem manda de quem obedece, e este não se perfila à porta de prédios e mansões, de lojas de comércio retumbante ou de restaurantes hoje habilitados a figurar entre os mais caros do planeta.

Sim, o país do futuro é estranhamente obsoleto e continua a pagar caro por três séculos e meio de escravidão.