domingo, 11 de novembro de 2012

Conservadorismo e fundamentalismos no Congresso Nacional: o AI-5

O artigo publicado abaixo é o retrato do que temos vislumbrado no horizonte da política brasileira, o início de uma teocracia fundamentalista, conservadora e moralista, não apenas no tema aborto, mas sim em todas as situações de nossa vida cotidiana. Este PROLEGÔMENOS, defende que cada ser humano pode acreditar no que quiser, mas não pode de maneira alguma e em nenhuma hipótese obrigar outros seres humanos a viver dentro de seus dogmas e convicções, cada um é livre para fazer ou deixar de fazer o que quiser, e se quiser fazer dentro das imposições legais, deve ser garantido o seu direito. Somos contrários a qualquer tipo de proibição, tudo deve ser permitido. É proibido proibir!
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Publicado em 5 de novembro de 2012 no Le Monde Diplomatique

Nas últimas legislaturas, as forças autoritárias do Congresso, representadas na bancada religiosa conservadora, tentaram reaparecer sob novas formas que lembram as fogueiras da Inquisição. Tal grupo procura, sob o manto de ferramentas democráticas, instaurar e intensificar uma nova onda de perseguição às mulheres
por Juliano Alessander , Kauara Rodrigues
Sabe-se que historicamente o autoritarismo, o conservadorismo e o fundamentalismo religioso têm se aliado para perseguir e reprimir movimentos sociais, especialmente quando se trata da luta feminista organizada em prol dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na América Latina. É por meio dessa perigosa articulação – intensificada por um sistema político e eleitoral excludente – que tais forças retrógradas atuam no Congresso Nacional brasileiro.
Nas últimas semanas, parlamentares da bancada religiosa apresentaram requerimentos de informações ao Ministério da Saúde e à Secretaria de Políticas para as Mulheres sobre os recursos disponibilizados “destinados a várias organizações não governamentais, muitas das quais dedicadas à promoção da legalização do aborto e seu reconhecimento como direito”. Apelando para legislações que viriam a beneficiar justamente a luta por transparência e democracia (como a Lei de Acesso à Informação), buscam fazer retroceder direitos consagrados constitucionalmente.
Ao mesmo tempo, circula um requerimento para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para “investigar a existência de interesses e financiamentos internacionais para promover a legalização do aborto no Brasil”. Por sua polêmica e complexidade, o tema da ilegalidade do aborto no Brasil merece um debate sério e aprofundado. No entanto, tal não é o objetivo exposto no requerimento de criação da CPI. Segundo esse requerimento, a presença dessas “organizações” financiadas pelo capital estrangeiro para legalizar o aborto no Brasil seria uma “afronta à soberania nacional”, além de crime.
É preciso informar, antes de tudo, que financiar projetos para alterar a legislação que criminaliza o aborto no Brasil não é crime. Nenhuma lei penal brasileira prevê essa aberração. É preciso recordar também que nenhum parlamentar antidireitos das mulheres levantou a “bandeira nacional” quando o Vaticano impôs que o Brasil assinasse um acordo que, desrespeitando os trâmites regimentais para a ratificação de acordos, foi aprovado em tempo recorde, sem debate com a sociedade e sem chance de ser emendado. O acordo Brasil-Vaticano legitimou os privilégios da Igreja Católica no país – especialmente no tocante aos direitos de propriedade e ao ensino religioso nas escolas públicas –, violando o princípio da laicidade do Estado.
Da mesma forma, para conseguirem informações do governo federal sobre as “temidas” organizações e sobre projetos que pretendem “legalizar o aborto no Brasil”, apelaram para a Lei de Acesso à Informação, com o objetivo de investigar com poder de polícia que tipo de apoio organizações feministas estão recebendo para lutar contra a criminalização do aborto. Assim, tal CPI tem intuito policialesco, invasivo e discriminatório contra as mulheres e as organizações que defendem a legalização do aborto no país, representando um verdadeiro atentado aos direitos humanos e à democracia.
Essa nova iniciativa dos grupos conservadores segue na contramão da luta por alterações na legislação e pela conquista de direitos. Sabe-se que o Código Penal inicialmente não deveria servir para controlar a população. Sua origem está, justamente, nas tentativas de controlar o poder punitivo do Estado, que já sentenciou centenas de milhares sem mesmo um inquérito penal. Nesse sentido, a máscara conservadora cai por terra. Ela pretende impedir que mulheres se organizem para lutar contra uma legislação conservadora, que lhes impõe uma jornada medieval no tribunal do júri e muitas vezes as leva à morte. Querem investigar o movimento de mulheres com poder de repressão. É o AI-5 “pró-vida”.

Uma luta democrática
Lutar por mudanças na legislação não pode ser crime. O debate político sobre um crime não pode ser jogado nos artigos de delitos penais, sob pena de se instaurar um novo regime ditatorial. A luta pela alteração de legislações retrógadas faz parte do próprio desenvolvimento do sistema democrático. Se assim não fosse, não haveria necessidade do parlamento. E Estado sem parlamento é típico de regimes autoritários, de forma que a luta pela legalização do aborto é uma luta, acima de tudo, democrática. Nesse sentido, está longe de ser fundamento para a criação e instalação de uma CPI.
Na contramão da luta por direitos, a própria bancada religiosa conservadora tem apresentado inúmeras proposições legislativas que visam retroceder ainda mais a legislação. Desde a Constituinte, contabilizamos mais de cem propostas que visam limitar o acesso a métodos contraceptivos, transformar a interrupção da gravidez em crime hediondo, aumentar a punição às mulheres que recorrerem ao aborto, colocando em risco a saúde de milhares delas por todo o país. Isso revela, mais uma vez, a falácia dos argumentos expostos no requerimento para a instalação de uma nova CPI do aborto.
Essa é apenas uma parte da ideologia conservadora atuante no Congresso. Seus representantes estão insatisfeitos com o devido processo legal, o duplo grau de jurisdição, o contraditório, o Estado laico e a luta pela liberdade das mulheres. Rejeitam, na verdade, a própria democracia.

Juliano Alessander  é advogado e consultor do Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) e Kauara Rodrigues é cientista política e assessora técnica do Cfemea.

Ilustração: Daniel Kondo.
 

 

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