segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Emiliano José: O comunista baiano que sobreviveu à ditadura

Publicado em 28 de janeiro de 2013 no blog VioMundo.

Marighella e Caetano

por Emiliano José*

A ditadura matou o comunista. Covardemente. Ditadura é sempre sinônimo de covardia. Nunca de coragem. Na noite paulista, o comunista foi assassinado no final de 1969. Matou e pretendeu enterrar o seu nome e o seu significado para sempre. Que ninguém mais se lembrasse dele. Que os brasileiros o esquecessem. Acontece, e a ditadura não podia compreender isso, nunca poderia, que os comunistas guardavam o sonho, como diz Caetano Veloso em seu belo Um comunista, no seu Abraçaço. E o sonho é indestrutível.

O comunista mulato baiano filho de um italiano e de uma preta haussá, que foi aprendendo a ler olhando o mundo desde a Baixa dos Sapateiros, entra em beco sai em beco, de onde subiu as ladeiras do conhecimento, de onde seguiu para o universo do comunismo. Assim nasce um comunista, um mulato baiano que morreu em São Paulo baleado por homens do poder militar nas feições que ganhou em solo americano a dita guerra fria Roma, França e Bahia. Os comunistas guardavam o sonho. Caetano estava no exílio quando mataram o comunista.

Caetano mandou um recado lá do quase inverno londrino: eu é que tinha morrido, ele estava vivo.

Claro que ninguém entendia o seu recado – eram tempos de ditadura. Vida sem utopia não entendo que exista: assim fala um comunista. Caetano sofre ao pensar nele: Era luta romântica era luz e era treva feita de maravilha de tédio e de horror. E ele sabia que o mulato baiano já não obedecia às ordens de interesse que vinham de Moscou. E sabia, sempre soube: os comunistas guardavam o sonho. Porém, a raça humana segue trágica sempre indecodificável tédio horror maravilha.

O ano do Abraçaço foi também o ano de O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, notável biografia sobre o comunista. Sobre ele, escrevi também um livro: O inimigo número um da ditadura militar. Ano de 2011, apareceu o filme de Isa Grinspum Ferraz, que o retrata com imenso carinho. Há o livro organizado por Jorge Nóvoa, há tantos outros estudos. O sonho do comunista não fora em vão. Sua memória, resgatada, pouco a pouco, e agora de modo cada vez mais acelerado.

Penso no Abraçaço, na ousadia de Caetano. Penso no que foram os comunistas, difíceis de serem decodificados nos dias de hoje. Tinham algo de solidamente aventureiros, que me desculpem a expressão. Não tinham lugar de pouso, eram errantes, pensavam na humanidade inteira sem deixar de amar sua terra, dedicavam-se à luta de maneira integral. Queriam o socialismo e o comunismo. Tinham convicções.

Caminharam primeiro pelo glorioso PCB, nada assemelhado com o PPS de hoje. Depois, repartiram-se em muitas siglas, e houve os que, como o comunista do Abraçaço, que se lançaram à luta armada contra a ditadura, acreditando ser aquela a única forma de luta possível diante de tanta violência e arbítrio. A repressão usou o martelo-pilão para matar a formiga, como diria o general Adyr Fiúza de Castro. Massacraram pessoas, torturaram, desapareceram com tantos brasileiros e brasileiras, o que agora pode ser mais bem esclarecido com a Comissão Nacional da Verdade.

Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar, o mulato baiano, o guerrilheiro que incendiou o mundo, o pai de Carlinhos Marighella, o comunista companheiro de Clara Charf, avô de Maria e de Pedro, estudante que impressionou o Central e a Politécnica com suas provas em versos, que se esbaldava nos carnavais baianos em sua juventude, que contagiava o mundo com sua alegria, que ajudou tantos a buscarem o exílio, que resolveu ficar até o fim na luta contra a ditadura, o comunista de Caetano Veloso é parte eterna da memória do povo brasileiro e do povo da Bahia, sua terra.

Se dele, Marighella, lembramos com admiração, se dele podemos aprender tanto em desprendimento, se dele acolhemos os sonhos generosos para com a humanidade, da ditadura, diferentemente, só podemos lembrar da violência e do arbítrio, da tortura, das mortes, dos desaparecimentos, uma longa noite de terror, uma situação que sob nenhuma hipótese queremos ver repetida. A ditadura será para sempre repudiada. Marighella é um herói de nossa gente. Para sempre.

*Artigo publicado originalmente na edição desta segunda-feira, no jornal A Tarde.

A belíssima letra da música Um Comunista de Caetano Veloso

Um mulato baiano,
Muito alto e mulato
Filho de um italiano
E de uma preta hauçá
Foi aprendendo a ler
Olhando mundo à volta
E prestando atenção
No que não estava a vista
Assim nasce um comunista
Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo
Baleado por homens do poder militar
Nas feições que ganhou em solo americano
A dita guerra fria
Roma, França e Bahia
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O mulato baiano, mini e manual
Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas
Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos
Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas
Como são os comunistas?
Não que os seus inimigos
Estivessem lutando
Contra as nações terror
Que o comunismo urdia
Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro
Quase sempre por menos
Quase nunca por mais
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!
O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado:
"eu que tinha morrido"
E que ele estava vivo,
Mas ninguém entendia
Vida sem utopia
Não entendo que exista
Assim fala um comunista
Porém, a raça humana
Segue trágica, sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano
Samba o reverencia
Muito embora não creia
Em violência e guerrilha
Tédio, horror e maravilha
Calçadões encardidos
Multidões apodrecem
Há um abismo entre homens
E homens, o horror
Quem e como fará
Com que a terra se acenda?
E desate seus nós
Discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara
O mulato baiano já não obedecia
As ordens de interesse que vinham de Moscou
Era luta romântica
Ela luz e era treva
Venta de maravilha, de tédio e de horror
Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas!

Nenhum comentário:

Postar um comentário